FUNDAMENTOS HISTÓRICOS DE UMA INTELIGÊNCIA REATIVA: REFLEXÕES SOBRE AS PERSPECTIVAS DE TRANSIÇÃO PARA UM MODELO DE INTELIGÊNCIA FOCADO NA PREVENÇÃO DA CRIMINALIDADE

Lucas Fernando Marquetti Soares

Resumo:

Este trabalho busca promover reflexões sobre o modelo de inteligência adotado na segurança pública, com foco na inteligência policial-militar, analisando as matrizes históricas de conformação policial na busca pela compreensão das razões de ser da inteligência praticada hoje nas polícias. A ideia central fundamenta o modelo de polícia adotado no Brasil como fruto da herança francesa, importada ao país no Século XIX e da formatação militar das Corporações à imagem dos desígnios do Regime Militar, a partir dos anos 1960. Esse quadro promoveu uma inteligência policial baseada na reação ao crime, em detrimento do aspecto preditivo, essencial à prevenção. A repressão à criminalidade, como característica mais notável da polícia contemporânea no Brasil encontra reflexo razoável na tipologia de seu serviço de inteligência. O presente se propõe discutir esse modelo, lastreado na trajetória policial brasileira.

Palavras-chave:

História da polícia; história da inteligência; inteligência policial.

 

HISTORICAL FOUNDATIONS OF A REACTIVE INTELLIGENCE: REFLECTIONS ON THE TRANSITION PERSPECTIVES TO AN INTELLIGENCE MODEL BASED ON CRIME PREVENTION

Summary:

This aims to promote reflections on the intelligence model adopted in public security, with a focus on police-military intelligence, analyzing the historical roots of police formation in the search for understanding the fundamentals of the intelligence practiced today in the police. The central idea underlies the police model adopted in Brazil as a result of the French heritage, imported to the country in the 19th century and the military formatting of the Corporations as a result coming from the Military Regime in the 1960s onwards. This scenario led to the foundation of a police intelligence based on the reaction to crime, ignoring a predictive aspect, essential for prevention. The crime repression, as a major characteristic of the contemporary police model in Brazil, finds a reasonable reflection in the typology of its intelligence service. Therefore, this work proposes to discuss this model, based on the Brazilian police historical trajectory.

Key words:

Police history; intelligence history; police intelligence.

 

Curitiba, 2022.

 

Introdução

O conceito de polícia está em constante transformação. Se na antiguidade clássica é possível vincular o termo à administração urbana em geral, a trajetória etimológica da palavra foi contornando-a com cada vez mais limitações, que definem o que hoje se entende como polícia. Como ensina João José Rodrigues Afonso (2010, p. 252), a polícia é uma organização administrativa “constituída para assegurar a ordem da cidade, a segurança das pessoas e dos seus bens, a tranquilidade e a paz públicas”. Por seu turno, a atividade de inteligência como conhecemos hoje nem sempre teve os contornos conceituais que reconhecemos facilmente (CEPIK, 2003b). Ocorre que sua associação com os serviços policiais contemporâneos, essa sim, parece ter uma uniformidade bastante evidente: a produção de um conhecimento que serve primeiro à reação contra o crime e os criminosos, que à prevenção da criminalidade:

A abordagem convencional para tratamento da criminalidade sempre se pautou por três eixos: dissuasão (entendida como altas sanções penais), inabilitação (entendida como encarceramento de infratores) e tamanho da força policial (PIQUET, 2009, p. 244-247). O desenvolvimento do aparelho penal foi matizado pela crença no pulso firme como solução suficiente para eliminar a delinquência, em uma abordagem ironicamente apelidada por Álvaro Cálix (2007) de “mais penas, mais cadeias, mais polícias”. (BORBA; CEPIK, 2011, p. 392).

 

O objetivo deste trabalho é, precisamente, analisar a relação que a inteligência de segurança pública, sobretudo a inteligência policial-militar tem com a dimensão repressiva do fazer-polícia.

A fim de promover o estudo proposto, inicialmente é preciso investigar as raízes das organizações policiais no Brasil, com referência inafastável àquelas que deram origem ao que conhecemos hoje como polícias militares e, finalmente, à Polícia Militar do Estado do Paraná (PMPR). Situando a conformação policial-militar brasileira na reorganização da segurança pública promovida no ascenso da Ditadura Militar, nos anos 1960, observa-se uma fragmentação dos conceitos originais da palavra polícia – e da própria natureza desse tipo de instituição. Essa nova estruturação se baseava numa herança policial de modelo francês1, voltada sobretudo à legitimação da coerção física legal sob o escopo de um amparo fundado, principalmente, na letra da lei e na autoridade do poder de polícia. Dessa raiz é que surge a inteligência praticada nas polícias militares brasileiras, bebendo não somente do modelo de polícia francês tradicional, prática mais notável da formatação policial brasileira, mas na própria adequação militar dessas instituições, profundamente influenciadas pelos modelos administrativos traduzidos do Exército Brasileiro desde os anos 1960:

Até hoje, o modelo militar de organização profissional tem servido como inspiração para maior parte das Polícias Militares.6 Assim como no Exército Brasileiro, as PMs possuem Estado Maior, Cadeia de comando, Batalhões, Regimentos, Companhias, Destacamentos, Tropas, etc. Seus profissionais não fazem uso de uniformes como os agentes ostensivos das recém-criadas Guardas Municipais; eles utilizam “fardas” bastante assemelhadas aos trajes de combate dos militares regulares. Nestas fardas estão fixados diversos apetrechos, como uma tarja com o “nome de guerra”, as divisas correspondentes aos graus hierárquicos e outras insígnias referentes à trajetória institucional do policial. (MUNIZ, 2001, p. 180).

 

O segundo momento do trabalho se detém na explicação do que é essa inteligência de segurança pública no Brasil de hoje, preocupando-se com sua formatação histórica, atribuições, doutrina e missão. A referência natural desse modelo de inteligência é a polícia a que serve. Se a corporação tem uma atuação voltada para a repressão da criminalidade, é natural admitir que para isso deve servir sua inteligência. Compreender as transformações sociais do Brasil, notadamente após a redemocratização nos anos 1980 e as mudanças no aparato de inteligência do país que se reestruturava no período, colabora na análise de como se fixaram as bases da inteligência praticada hoje no país. Por seu turno, as polícias militares tiveram também seu período de transformações advindas da nova ordem social, o que teve notável impacto na sedimentação das diferentes dimensões de policiamento que as compõe, sendo a inteligência policial-militar um dos pontos essenciais para a compreensão das práticas policiais brasileiras nas últimas três décadas (BENGOCHEA; GUIMARÃES; GOMES; DE ABREU, 2004).

Finalmente, pretende-se lançar um debate sobre a necessidade de que a inteligência policial-militar se projete como instância fundamental de transformação na praxe da segurança pública. A proposta de prevenção da criminalidade, característica de um modelo de polícia que vê como medida de seu sucesso a ausência de crime serve não somente como mudança de paradigma, mas como resposta ao que se pode identificar como anseio popular por uma transformação no fazer-polícia (MUNIZ, 2001). Olhar para o passado é importante para se compreender os fenômenos do presente, mas pode servir, também, como instrumento de projeção do futuro, não somente de reação às ocorrências criminais. Se tal ideia de polícia não busca medir sua eficácia pela quantidade de prisões ou apreensões de objetos ilegais, mas pela ausência de crime nas comunidades policiadas, sua inteligência deve ser instrumento das medidas de prevenção. O suporte desse modelo viria, assim, de uma inteligência policial-militar com foco na predição – e mesmo na antecipação de tendências como amparo ao planejamento de ações preventivas, com a conseguinte superação do paradigma repressivo-reativo identificado com a segurança pública de hoje (SANTOS, 1997).



Metodologia

A fim de realizar os objetivos do presente, escolheu-se como método básico a revisão bibliográfica:

Após a escolha do tema, o pesquisador deve iniciar amplo levantamento das fontes teóricas (relatórios de pesquisa, livros, artigos científicos, monografias, dissertações e teses), com o objetivo de elaborar a contextualização da pesquisa e seu embasamento teórico, o qual fará parte do referencial da pesquisa na forma de uma revisão bibliográfica (ou da literatura), buscando identificar o “estado da arte” ou o alcance dessas fontes. (PRODANOV; FREITAS, 2013, p. 131).

 

Essa escolha se deu para dialogar com a metodologia histórica adequada à análise do problema, que é a da nova história política, conforme ensinada por René Remond (1998). Segundo o autor, trata-se de “observar as mudanças que afetam a sociedade” (p. 13). Nesse aspecto, sendo a polícia, enquanto instituição e também como conceito, parte indissociável da sociedade, o estudo sobre suas mudanças conversa diretamente com as mudanças sociais. Obter sucesso em tal investigação, em se tratando de história, pode resultar da busca em fontes primárias, mas também, nas palavras já mencionadas de Prodanov & Freitas, da “contextualização da pesquisa e seu embasamento teórico” (2013, p. 131), aqui dispostas na forma de revisão do estado da arte sobre inteligência e história da polícia no Brasil.

Apesar de incipiente, a historiografia sobre polícia no Brasil tem agregado cada vez mais trabalhos de qualidade, mas sem uma conformação definitiva de regiões acadêmicas que as produzem. Por tais motivos, elegeu-se a plataforma Google Scholar como motor de busca principal das fontes aqui utilizadas. O uso dos termos polícia, história, polícia militar, inteligência, inteligência policial e história da inteligência retornaram um vasto número de livros e artigos científicos, que foram analisados e filtrados sob a ótica do objetivo deste trabalho. O produto está aqui disposto com uma rica análise daquilo que se pretende discutir sobre a história da polícia e de sua inteligência.



Raízes do modelo policial brasileiro

A historiografia tradicional aponta para a vinda da família real portuguesa para o Brasil, no início do século XIX, como principal fomentador da criação de instituições propriamente policiais (BRETAS; ROSEMBERG, 2013; MUNIZ, 2001). À despeito da existência prévia de organizações encarregadas da promoção da lei e da ordem (COTTA, 2004), parece haver no grupo de instituições importadas pela administração de Dom João VI pelo menos duas que se pode reconhecer como antecessoras das polícias civis e militares que há hoje no Brasil. A criação da Intendência Geral de Polícia do Rio de Janeiro, em 1808 e da Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, no ano seguinte, na mesma cidade, pode ser indicada como elemento primeiro da instituição de polícias, de fato, no país (BRETAS; ROSEMBERG, 2013).

Sob o caminho das polícias militares, portanto, a Divisão Militar da Guarda Real foi uma instituição moldada ao estilo da polícia de Lisboa, que teve forte influência, à época – como muitas de suas organizações congêneres na Europa Continental –, do modelo francês inaugurado por Luís XIV quando da instalação da Tenência de Polícia de Paris, em 1667 (BRETAS; ROSEMBERG, 2013). Essa polícia tinha por característica principal ligar sua legitimidade à figura de autoridade representada pelo soberano. Da noção de que uma figura central, com a vontade absoluta sobre a prosperidade e benefício de sua população, transmitisse sua autoridade à uma instituição encarregada dos mais diversos serviços, desenvolveu-se um modelo policial profundamente hierarquizado e burocratizado (AFONSO, 2018). A Revolução Francesa, se por um lado extirpou a autoridade do Rei sobre as instituições, por outro moveu a legitimação dessas organizações para o próprio estado de direito (SANTOS, 1997). Formatado pela vontade popular, expressa na voz de seus representantes eleitos, o conjunto de normas que passava a reger o novo Estado é que daria a conformação necessária às instituições, incluída aí a polícia:

Os abusos do Absolutismo e do Estado de Polícia conduziram às revoluções liberais, que lhes puseram termo. Uma série de fatores, de entre os quais os ideais liberais e a introdução do constitucionalismo, levaram o conceito de polícia para um novo rumo, reduzindo-o à dimensão de garantia da segurança pública para o exercício dos demais direitos e liberdades. (AFONSO, 2018, p. 252).

 

Em semelhante dimensão, diante da influência dos acontecimentos na França, a emergência e fortalecimento de outros estados nacionais a partir do século XVIII contribuiu para a consagração da ideia de direitos fundamentais aos homens. A nova formatação estatal, portanto, exigia dos governos não somente o reconhecimento desses direitos, mas a promoção de suas garantias (SANTOS, 1997). Essa nova polícia, embora herdeira conceitual da Tenência de Polícia de Paris, via gradativamente a delimitação de suas atividades com uma especialização que viria, em menos de um século, definir o conceito de modo bastante próximo das dimensões que temos hoje reconhecidas nas atividades de polícia, de modo geral (AFONSO, 2018).

A polícia importada pelos portugueses para o Brasil no século XIX tinha profundas ligações semânticas, conceituais e rituais com suas similares europeias. Encarregada de garantir a ordem pública em um Rio de Janeiro efervescente – fosse pela mudança do status brasileiro na conformação do novo Reino Unido com Portugal, fosse pelo próprio desenvolvimento agroindustrial do período – era uma organização necessária, mas ainda sem um papel essencial na administração local (COTTA, 2004). Com parcos recursos e segregada aos recônditos mais indesejáveis da cidade, essa instituição tinha, contudo, sua base humana como reflexo da própria sociedade de então: homens não-brancos e de baixo extrato social (BRETAS; ROSEMBERG, 2013).

Poucas décadas depois, em 1854, a mesma necessidade que a coroa do Reino Unido identificou quando da criação das polícias no começo daquele século esteve no nascimento da Companhia da Força Policial, organização que deu origem à PMPR de hoje (SCHACTAE, 2011). Fundada na esteira da emancipação política do Paraná da Província de São Paulo, respondia não somente aos desejos locais de fortalecimento da autonomia provincial, mas também servia a um dito projeto civilizador da elite paranaense: controle social na promoção da paz pública (LAMB, 1996). Organizada militarmente e subordinada ao Presidente da Província, essa organização, embora nascida como polícia, teve sua atuação ligada, principalmente, aos grandes conflitos internos do Brasil, pelo menos até a década de 1930, quando após compor armas com o Exército Brasileiro na supressão da Revolta Constitucionalista de 1932, deixou de ser mais um tipo de pequeno exército estadual para assumir funções reconhecidas hoje como propriamente policiais (ROLIM, 2000).

De um momento de atuação mais discreta durante a Era Vargas, inclusive à vista das transformações promovidas por Getúlio que centralizaram a administração das Polícias Militares, a PMPR passa pelo Estado Novo e depois pela República Nova numa dimensão de transição (ROLIM, 2000). Após sua atuação nos conflitos bélicos do começo republicano, a PMPR chega à década de 1960 para ser reorganizada pela administração imposta pelos militares das Forças Armadas, que tomando o poder no Brasil de então, passaram a delimitar o papel das polícias militares no Brasil: a primeira linha da atividade repressiva – tanto contra a criminalidade quanto contra os opositores do Regime Ditatorial (NAPOLITANO, 1998).

Nasce aí a conformação organizacional que a PMPR guarda até hoje. A estrutura administrativa, a doutrina de aplicação e, inclusive, muitos de seus símbolos e tradições têm origem nessa reorganização promovida pelos militares que governaram o Brasil no período. A Constituição consagra às polícias militares a “exclusividade do policiamento ostensivo (...) onde se presuma ser possível a perturbação da ordem” (BRASIL, 1967), em outras palavras, uma incipiente destinação preventiva às organizações que, até então, agiam focadas, principalmente, na resposta aos incidentes julgados de natureza policial. Todavia, ao passo em que essa delimitação ocorre – em razoável alusão àquilo que João Afonso (2018, p. 213) chama de “percurso onomasiológico2” da palavra polícia, uma outra marcação essencial ocorre: além de prevenir, caberia às polícias militares agir como força de repressão, em caso de perturbação da ordem. Esse elemento consagrava então, oficial e finalísticamente, a tônica de atuação dessas instituições até a atualidade.

A inteligência policial se desenvolve, portanto, nesse mesmo contexto de missões delimitadas da PMPR na Ditadura Militar. Construída à imagem e semelhança dos modelos de estado-maior das Forças Armadas, a 2ª Seção do Estado-Maior da PMPR ou PM2 – estrutura replicada nas unidades operacionais como P2 – é, então, o órgão encarregado de centralizar a produção do que se chamava, à época, de informações3. Seu produto deveria permitir à Polícia Militar a correta, eficiente e eficaz execução de suas atribuições, entre elas, a repressão contra tudo aquilo que viesse a perturbar a ordem pública.

A transição democrática iniciada com a queda do Regime Militar em 1985 deveria ter instaurado, a partir da Constituição Federal de 1988, um novo modelo de administração da sociedade brasileira, incluindo aí uma reforma do sistema policial que se adequasse à nova realidade democrática (PINHEIRO, 1997). Apesar dos avanços normativos, a polícia no Brasil contemporâneo ainda percebe “vícios” herdados de seu passado no regime autoritário:

Nessa perspectiva, a organização policial na sociedade brasileira vai se caracterizar por um campo de forças sociais que se estrutura a partir de três posições: o exercício da violência legítima, a construção do consenso e as práticas de excesso de poder, a violência ilegítima. As relações dinâmicas e combinatórias desses três vetores vão definir a função social da organização policial no Brasil, na época contemporânea. (SANTOS, 1997, p. 164).

 

A superação desse modelo policial traz em si a possibilidade não só de responder a um anseio social, mas também de promover uma transformação em uma dimensão ampla da segurança pública e da própria sociedade. Esse desafio envolve, também, a compreensão de que as ferramentas desse policiamento reativo carecem, por seu turno, de transformações fundamentais que lhes permitam influir nesse movimento de mudança. A inteligência de segurança pública, e no caso específico, a inteligência policial-militar, conforme definida pela Doutrina, surge como aparato natural de suporte para um modelo policial mais eficaz na prevenção da criminalidade e que garanta, ao mesmo tempo, a segurança das pessoas e dos policiais.

 

Reação ou prevenção: modelos de inteligência e sua formatação histórica

Embora claramente identificável como elemento essencial ao assessoramento esperado dos serviços de inteligência, a antecipação e a previsão perdem espaço numa conjuntura de foco repressivo. Nesse contexto sobressai uma espécie de “fixação policial” com o passado recente do crime, muito mais facilmente associado à investigação policial que à inteligência. O cerne dessa crença, profundamente enraizada nos operadores de inteligência de segurança pública está na própria natureza da função policial brasileira: de sua herança histórica pautada no modelo francês de polícia, por um lado, e da notável influência da inteligência militar e de repressão praticadas na Ditadura que se encerrou em 1985.

Inicialmente, é possível situar a relação dessa inteligência reativa com o desenvolvimento da polícia no Brasil, ainda que as instituições de origem não tivessem, em si, essa conformação contemporânea de inteligência de segurança pública, tornando anacrônicas quaisquer tentativas de comparação direta. O que se busca, é contextualizar o momento de formação das organizações policiais, extraindo de cada ponto de interesse aquilo que parece ter contribuído para a consagração desse modelo de inteligência voltado para a repressão.

Se o desenvolvimento da atividade de inteligência contemporânea se dá após a 2ª Guerra Mundial (CEPIK, 2003b), ainda que se possa identificar, formalmente, o início da inteligência no país com o estabelecimento do Conselho de Defesa Nacional (CDN), em 1927 (GONÇALVES, 2014), a formatação de uma inteligência policial no Brasil está muito mais associada com o contexto da Ditadura Militar nos anos 1960 que com qualquer outro período da história das polícias no Brasil (FICO, 2001). Esse momento é crucial para entender a formação dessa estrutura que preza pela reação:

(…) acusações de violação de outros direitos civis como invasão de privacidade, monitoramento de correspondência e grampos telefônicos continuaram. Durante o Regime Militar, tais práticas eram de certo modo disseminadas e realizadas não somente pelo SNI, mas também pelas agências de inteligência das Forças Armadas e por aquelas vinculadas às polícias (Polícia Federal, Polícias Militar e Civil dos vinte e sete estados) (ANTUNES; CEPIK, 2003, p. 355, tradução minha4).

 

Ora, essa atividade de inteligência durante a Ditadura servia muito mais como suporte às ações de manutenção de poder do Estado, de sedimentação de uma dita governabilidade5 manifestada pelo exercício do poder pelos militares. A estrutura montada à volta do Serviço Nacional de Informações (SNI), centralizaria a produção de conhecimento, descentralizando, contudo, as tarefas de vigilância policial às unidades mais distantes do centro técnico desse sistema. Nessa periferia do Sistema de Informações estavam as inteligências das Polícias Militares. Em alusão às próprias missões constitucionais, bastante claras segundo o texto da Constituição de 1967 (BRASIL, 1967), caberia às Polícias Militares manter, também, uma dita segurança interna. Essa segurança foi descrita em detalhes na Lei de Segurança Nacional, homologada pelo Decreto-Lei nº 314, de 13 de março de 1967. Esse instrumento era a materialização da chamada Doutrina de Segurança Nacional, cujo principal expoente era o próprio fundador do SNI, General Golbery do Couto e Silva (NAPOLITANO, 2014). Segundo a Doutrina de Segurança Nacional, havia um dito “inimigo interno” a ser combatido – fundado, sobretudo, no medo de uma ameaça comunista. A lógica é irrefutável ao se associar, portanto, o enfrentamento desse inimigo como uma das missões das Polícias Militares. Se isso cabia às polícias, seus serviços de inteligência a isso deveriam servir, igualmente, como instrumentos de execução das políticas de segurança pública, que associam, então, a repressão aos inimigos do Regime como tarefa de polícia (FICO, 2001). Nessa ótica de combate, o sucesso dessa inteligência poderia ser medido pela quantidade de prisões de pessoas que iam contra a ordem social: os criminosos. É razoável supor vir desse momento e dessa conformação prática a crença de que o sucesso da atuação policial-militar está pautado não na ausência de crime, mas na quantidade de pessoas que são presas e de drogas e armas que são apreendidas. Se tais são os instrumentos utilizados por aqueles indivíduos-alvo do controle social exercido pela polícia, a inteligência vai medir sua eficiência pela quantidade de prisões ou de apreensões que proporcionar. Esse modelo, que se identifica facilmente na conformação de uma inteligência no período de exceção no Brasil, parece não ter sido superado pelas modificações trazidas pela redemocratização, nos anos 1980. Se há críticas a um lento processo de reforma policial que era esperado com a mudança constitucional do fim da Ditadura (MUNIZ, 2001; SILVEIRA, 1997; SANTOS, 1997), pouca produção científica se dispõe a estudar esse momento de continuidade de uma inteligência que servia mais como instrumento de poder que de assessoramento para tomada de decisão.

O momento pós-1988 pouco contribuiu para a revisão dessa ordem de trabalho na inteligência policial, vez em que – talvez influenciada por uma extrema rejeição das representações mais ostensivas do período anterior – a inteligência, no Brasil, é deixada em segundo plano (GONÇALVES, 2014). Nesse momento, ainda que a atividade de inteligência no país tenha sido relegada a um patamar inferior de importância, se comparada ao período da Ditadura, as Polícias Militares vivem o auge de sua emancipação, de sua independência da direção que tinham sob o Exército Brasileiro, fruto do Decreto-Lei nº 667, de 19696. No Paraná, a PMPR somente voltou a ter um comandante originário de suas fileiras a partir de 1983 (SENTONE, 2021), ou seja, nos anos 1990 era de se esperar superada boa parte da influência que subordinou as Polícias Militares ao que Muniz (2001) chama de “paradigma militarista” – que é o apego exacerbado às tradições e a organização militar em detrimento das funções propriamente policiais das corporações. No entanto, o que se lê da atuação policial no período é uma adaptação das doutrinas de inteligência aplicadas no Regime Militar à nova realidade democrática, o que não parecia corresponder à nova expectativa social sobre a atividade de polícia, especialmente das Polícias Militares.

No fim dos anos 1990, com a retomada da organização da atividade de inteligência no Brasil, a criação do Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) e a emergência da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) como seu órgão central (ANTUNES; CEPIK, 2003), busca-se um distanciamento com as ações repressivas levadas a efeito pelas inteligências no período da Ditadura. A criação de um Subsistema de Inteligência de Segurança Pública (SISP), também no começo do novo século parecem guiar as corporações para um novo momento da produção de conhecimento. Todavia, a atuação policial-militar no campo da inteligência segue na esteira de ações que ocorriam nos anos 1960 a 1980. No Paraná, a Diretriz Geral de Planejamento e Emprego da PMPR destaca o Grupo Águia7, como elemento de destaque no Serviço de Inteligência da Corporação:

A 2ª Seção do EM, órgão central do SIPOM – Sistema de Inteligência da PMPR, executará as missões e objetivos constantes na Diretriz 001/99 – PM/2, de 09 Set 99, a qual deve dar ênfase ao monitoramento, mapeamento, prevenção e repressão ao “crime organizado” no Estado.

O Comandante Geral terá a sua disposição exclusiva, um grupo especial de trabalho, denominado – GRUPO ÁGUIA – Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque, tendo por finalidade a “prevenção e repressão do crime organizado, especialmente assaltos a ônibus e roubos de veículos e cargas nas rodovias”, sendo composto, preferencialmente por 01 (um) Oficial Superior como Coordenador e por policiais militares especialmente treinados, conforme dispõe o Decreto nº 4.914/98. (Diretriz nº 004/2000-PM3, grifos meus).

 

A criação do Grupo Águia, em 1998 e sua consagração normativa na Diretriz de Emprego da PMPR em 2000 é uma clara evidência do equívoco doutrinário na compreensão do que deveria ser a atividade de inteligência policial-militar. A associação dos termos “inteligência e ataque” não faz nenhum sentido do ponto de vista doutrinário, e a sempre presente missão de “repressão ao crime organizado” declara finalísticamente uma inteligência voltada para tarefas executivas e não para o assessoramento de seus usuários, em visível contraste às disposições exaradas pela Lei nº 9.883, de 1999, que criava o SISBIN. Nesse diploma, há um conceito bastante claro do que se compreendia como atividade de inteligência:

§ 2o Para os efeitos de aplicação desta Lei, entende-se como inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado. (Lei nº 9.883/1999).

 

Não resiste uma comparação das prescrições da Diretriz de Emprego da PMPR sobre o Grupo Águia e do conceito de inteligência exposto na letra da lei. Há uma notável perda de sentido no uso da palavra inteligência conforme a compreensão da PMPR no início dos anos 2000.

Atualmente, quando se fala em inteligência reativa ou repressiva, o modelo proposto é bastante similar ao do Grupo Águia. Em 2008 foi criada a Força Samurai, então celebrada pelo Comandante-Geral da PMPR, Coronel Anselmo José de Oliveira, no Boletim Especial nº 003:

O narcotráfico flagela nossa sociedade e a Polícia Militar atende ao clamor da sociedade que através do fone 181 tem demonstrado sua angustia quanto a questão do trafico de drogas. A PMPR lançou há poucos dias a Força Samurai – grupo de policiais-militares que tem a missão específica de combater as ações deste crime organizado utilizando-se do serviço de inteligência, das denúncias do 181 e da Companhia de Polícia de Choque, a fim de minimizar o sofrimento das famílias que foram acometidas por este mal. (Boletim Especial nº 003/2008).

 

É importante considerar que os resultados conhecidos de ambas as iniciativas citadas têm enorme sucesso segundo as métricas adotadas pela PMPR. Não são raros os elogios em boletins da PMPR e as matérias na imprensa que destacam a excelente atuação do Grupo Águia e do Grupo Samurai em tarefas de repressão à criminalidade. Contudo, é fundamental salientar que, consoante a compreensão de inteligência exarada primeiro pela Lei 9.883/99 e depois pelo conjunto doutrinário que a ela se seguiu, suas ações estão muito mais próximas da investigação criminal, que da inteligência. Se for necessário classificá-las, então, como inteligência, o termo deve ser adjetivado como “reativa ou repressiva”, para a devida conformação doutrinária.

É a emergência da Constituição de 1988 que consagra a noção de que uma nova dimensão de policiamento parece ser exigida daquelas instituições que, se mantiveram o nome Polícia Militar, começaram a deixar no passado muitas das práticas policiais que cumpriram sob a ordem social anterior (MUNIZ, 2001). A sociedade declara, com o texto constitucional, a vontade de uma polícia que se distancie do modelo burocrático, que retira sua legitimidade principalmente da Lei, para se aproximar de um policiamento fundado no contato com a comunidade, na mediação e, principalmente, na prevenção dos delitos. Nesse aspecto, parece haver espaço para a junção do modelo francês de polícia, interpretado à forma brasileira, com o modelo inglês, conforme ensina Santos (1997, p. 160):

(…) da tardia formação da polícia na Inglaterra derivou o denominado “modelo inglês de polícia”, baseado em uma relação dos membros do aparelho policial com a sociedade local. Esta “polícia comunitária” acentuava sua legitimidade seguindo alguns princípios: prevenir o crime e a desordem; reconhecer que o poder policial depende da aprovação do público e deste modo ganhar sua cooperação voluntária; reconhecer que a cooperação do pública está na razão inversa da necessidade de utilizar a coerção física; empregar a força física minimamente; oferecer um serviço a todos os cidadãos; manter a relação polícia-público ; respeitar o poder judiciário ; reconhecer que o indicador da eficácia da polícia é a ausência do crime e da desordem (cf. Gleizal, Gatti-Domenach & Journés, 1993, p. 87-108). Poderíamos dizer que até hoje a organização policial depende da combinação desses dois modelos, o sistema francês estatal e centralizado e o sistema inglês comunitário, aliando o exercício da coerção física legal com a busca da legitimidade de sua ação social. (SANTOS, 1997, p. 160, grifo meu)

 

A construção de um novo aparato de segurança pública parece, mesmo hoje, ponto distante na prioridade das políticas públicas, eis que se observa a reciclagem, ano após ano, das mesmas estratégias de policiamento que até o momento não conseguiram retirar o Brasil da lista de países mais violentos do mundo.

A Política Nacional de Inteligência de Segurança Pública (PNISP), assim apresenta o conceito base da atividade:

(…) A atividade de inteligência de segurança pública é conceituada como o exercício permanente e sistemático de ações especializadas destinadas à identificação, à avaliação e ao acompanhamento de ameaças reais e potenciais no âmbito da segurança pública, orientadas para a produção e a salvaguarda de conhecimentos necessários ao processo decisório no curso do planejamento e da execução da PNSPDS e das ações destinadas à prevenção, à neutralização e à repressão de atos criminosos de qualquer natureza que atentem contra a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio. (Política Nacional de Inteligência de Segurança Pública, aprovada pelo Decreto nº 10.777, de 24 de agosto de 2021).

 

Realizar os objetivos descritos no conceito não é possível com uma inteligência prioritariamente reativa. O acompanhamento permanente e sistemático das ameaças – temas prioritários para a produção de conhecimento descritos na PNISP – é fundamental para a execução de uma adequada e bem-sucedida política de segurança pautada em inteligência. A realização dessas tarefas prescinde, assim, de um modelo de aplicação fundado na produção de conhecimento que permita a antecipação de fatos (CEPIK, 2003a) que atentem contra a ordem pública. O olhar para o passado, sob essa ótica, ocorre para a compreensão do momento presente, mas sempre com vistas ao estudo e análise de tendências criminais – ou diversas disso, quando de interesse da segurança pública.

A simples reação à ocorrência de crimes, com a busca pela identificação de autoria e obtenção de materialidade delitiva, reitera-se, não permite a consecução das atribuições de inteligência presentes no conceito sedimentado pela PNISP, uma vez atendem somente à dimensão repressiva da ideia. Prevenir a criminalidade não é deixar de lado sua repressão, eis que a letra da norma é clara em atribuir à inteligência, além da produção de conhecimento, competências para a neutralização e repressão de atos criminosos, elemento essencial à garantia da ordem pública. O argumento presente se sustenta, portanto, numa dimensão de defesa das bases conceituais, conforme explicadas por Scarpelli de Andrade:

 

Desta forma, a seguir são apresentadas três importantes bases conceituais, que são abordadas tanto por autores clássicos como contemporâneos:

1) Foco na produção do conhecimento, através de metodologia própria.

2) Natureza consultiva, ou função de assessoria ao processo decisório.

3) Relação adequada entre o analista de Inteligência e o decisor, em função do risco de Inteligência politizada. (SCARPELLI DE ANDRADE, 2012, p. 50).

 

O debate se conecta ao histórico da trajetória das Polícias como instituições brasileiras, pois se pretende uma resposta adequada ao momento social vigente: uma sociedade que se pretende pacífica, deve viver na ausência de crime. Em outras palavras, é a defesa de um modelo que preza pela antecipação dos fatos delitivos mais que pela reação aos mesmos.

Considerações Finais

 

A defesa de um modelo de inteligência fundado na predição tem a clara pretensão de influenciar o frágil balanço institucional nas organizações de segurança pública que tendem, ainda, para um modelo policial reativo. Reagir a um problema que já aconteceu tem se provado, nas mais variadas dimensões, uma condição muito menos eficaz e eficiente que a prevenção desse mesmo problema.

Essa inteligência para prevenção tem sua base nas propostas de assessoramento para tomada de decisão, em linha com os preceitos doutrinários da atividade no Brasil. Não compete à Inteligência, mas às autoridades com competência para tomar decisões o direcionamento dos recursos e ações para resolver os problemas de segurança pública. À inteligência cabe analisar os problemas e sobre eles produzir conhecimento. É desse produto, que lida com tendências de acontecimentos, predição de eventos e até mesmo a apresentação de estimativas é que advém os subsídios úteis à prevenção da criminalidade. A reação está associada, primordialmente, ao trabalho investigativo, que busca elucidar a ocorrência de um crime a obtenção de autoria e materialidade, em notável diferença à proposta de produção de conhecimento para assessoramento da tomada de decisão. Nesse aspecto, pontua-se que um ponto de distinção entre a inteligência policial-militar e a investigação criminal se daria, justamente, pela associação daquela ao modelo preditivo-preventivo, uma vez que não tem por escopo a obtenção de provas ou comprovação de autoria de determinado crime.

O exemplo crasso vem de campos como a demografia, em que estudos detalhados de já destacaram o papel fundamental da prevenção, salientando correlações entre elementos que podem ser tratados, por exemplo, pela inteligência policial-militar. Vejamos um caso-exemplo analisando estudo de Daniel Cerqueira e Rodrigo Moura (2019, p. 31) indicando que “em linhas gerais, 1% de aumento da taxa de desemprego dos homens está associado ao aumento de 1,8% na taxa de homicídio”. Apesar da correlação ter um universo limitado de análise, ela aponta caminhos claros de relacionamento entre desemprego e criminalidade. Nesse aspecto, sob a referência constitucional das missões da Polícia Militar e admitindo uma política pública que preze pela redução das taxas de homicídio, caberia à inteligência policial-militar o emprego para o estudo detalhado das porções econômicas, geográficas, culturais e sociais associadas ao desemprego. Eventual análise de inteligência sobre esses assuntos permitiria a implementação de planos de policiamento que fizessem referência às áreas, momentos e, principalmente, grupos populacionais mais vulneráveis em relação aos homicídios. A abordagem tradicional, que se defende aqui como “inteligência reativa ou repressiva”, teria foco, em hipotética situação, na identificação dos autores dos homicídios, sem preocupar-se com a demografia do crime. Esse tipo de ação está muito mais envolvido com os conceitos de investigação policial que de inteligência (SCARPELLI DE ANDRADE, 2012).

Muito embora o exemplo anterior seja pequeno se comparado ao enorme potencial que outros casos têm de refletir a importância de uma inteligência focada num espectro que se dissocie da investigação criminal, explica de modo simples a ideia proposta. A provocação presente é pela superação de um modelo de inteligência policial-militar pautado na reação contra o crime, um chamado à importância de uma mudança no desequilíbrio hoje existente entre as formas de se produzir inteligência na segurança pública.

A confusão conceitual entre inteligência e investigação, muito mais grave no campo policial que em relação a outros tipos de investigação, surge como ponto culminante, então, na busca por compreender as razões dos problemas aqui destacados:

Enquanto na investigação criminal busca-se a autoria e a materialidade do fato, a inteligência policial a subsidia mediante ferramentas tecnológicas, como análise de vínculos e recursos operacionais, como vigilância e interceptações telefônicas e ambientais. Além disso, a missão da inteligência policial é de assessoramento, visando à produção de conhecimento e sua salvaguarda, enquanto a missão da investigação criminal é de execução, visando à produção de provas (MOREIRA, 2013, p. 97).

 

Nessa dimensão, admitindo a concepção de Moreira, que insere no rol de elementos de inteligência a interceptação telefônica e ambiental, é necessário consultar a DNISP (2016), que as coloca como elementos de Inteligência policial-judiciária. Essa espécie de Inteligência de Segurança Pública só é doutrinariamente adequada à Polícia Militar nas investigações policiais militares. É por esse motivo que Scarpelli de Andrade (2012, p. 43) explica que se os requisitos para “tornar lícita a interceptação” de sinais e dados são “ordem judicial e existência de investigação ou processo penal”, tais elementos não podem ser usados para fins de assessoramento, mas apenas para investigação criminal.

Enquanto os recursos de inteligência seguirem o caminho da inteligência reativa, que alimenta um trabalho policial voltado à repressão da criminalidade, a prevenção seguirá em segundo plano. Se a finalidade da execução das políticas de segurança pública é a repressão criminal, então não há que se falar em mudança, no entanto, sendo acertada a disposição de que a sociedade demanda um serviço policial que busque a ausência de crime, é numa inteligência de antecipação que devem se fundar as políticas de ISP.

 


Referências

 

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1 José Vicente Tavares dos Santos define o modelo francês de polícia como “centralizado e estatal” (1997, p. 158). A raiz óbvia dessa afirmação vem da própria genealogia policial, que o autor identifica, no caso francês, a partir da criação da Tenência de Polícia de Paris, em 1667. Citando ELIAS (1990), Tavares dos Santos salienta que cabia à “autoridade central legitimar a atuação dessa polícia”.

2 O autor faz referência ao encontro do significado com o significante, enquanto busca explicar a trajetória etimológica da palavra polícia, num resumo daquilo que entende ser a própria evolução do conceito de polícia: “A palavra polícia tem um longo percurso onomasiológico. Nasce na Antiguidade Clássica greco-romana, com o vocábulo ‘politeia’ dos gregos e ‘politia’ dos romanos, com o significado de governo da Cidade-estado. Na Idade Média, o conceito de polícia evoluiu para significar a boa ordem da sociedade civil, promovida pelo príncipe. Na Idade Moderna, com a emergência das teorias absolutistas do Poder, o conceito de polícia passou a designar toda a atividade do Estado tendente ao bom governo da nação e à ordem pública em geral. O direito policial (jus politiae), entendido como a ciência de governar os homens, constituía o meio através do qual o príncipe atingia o fim eudemonológico do Estado: a felicidade da nação. Com o fim do Antigo Regime e a introdução dos valores liberais, o conceito de polícia tomou um novo rumo, reduzindo-se às dimensões de garantia da segurança pública para o exercício dos demais direitos e liberdades. O Estado de direito ajustou-o aos seus princípios dogmáticos. Assim nos chega o sentido atual de polícia”.

3 Nas doutrinas modernas, o termo foi substituído por “conhecimento”, sinônimo também de “inteligência”.

4 No original: “accusations of the violation of other civil rights, such as invasion of privacy, correspondence monitoring, and telephone bugging continued. During the military period, these practices were somewhat disseminated, and carried on, not only by the SNI, but also by the intelligence agencies of the Armed Forces, and by those of the police forces (federal police, the military police, and civil police of the twenty-seven states)”. (ANTUNES, CEPIK, 2003, p. 355).

5 Conforme ensina SANTOS (1997, p. 161), a própria estrutura policial é fundamento para a governabilidade: “mantém-se, pois, uma ambivalência no trabalho policial entre o exercício da coerção física legítima e o desempenho de uma função social marcada pelo consenso, isto é, o exercício de funções de bem-estar social ou de relacionamento com as coletividades ou comunidades locais: uma e outra atividade tendem a se reforçarem duplamente, configurando um movimento de construção da governabilidade que ajuda a construir o poder do Estado sobre o conjunto e sobre cada um dos membros da coletividade e, simultaneamente, constrói a legitimidade da organização policial enquanto tecnologia de poder que realiza a governabilidade do Estado-Nação.”

6 Para referência, vejamos alguns elementos dessa subordinação expostos no texto legal:

Art. 1º As Polícias Militares consideradas fôrças auxiliares, reserva do Exército, serão organizadas na conformidade dêste Decreto-lei. Parágrafo único. O Ministério do Exército exerce o contrôle e a coordenação das Polícias Militares, sucessivamente através dos seguintes órgãos, conforme se dispuser em regulamento.
(…)

Art. 21. Compete ao Estado-Maior do Exército, através da Inspetoria-Geral das Polícias Militares:

a) Centralizar todos os assuntos da alçada do Ministério do Exército relativos às Polícias Militares, com vistas ao estabelecimento da política conveniente e à adoção das providências adequadas.

b) Promover as inspeções das Políticas Militares tendo em vista o fiel cumprimento das prescrições deste decreto-lei.

c) Proceder ao contrôle da organização, da instrução, dos efetivos, do armamento e do material bélico das Polícias Militares.

d) Baixar as normas e diretrizes para a fiscalização da instrução das Polícias Militares.

e) Apreciar os quadros de mobilização para as Polícias Militares de cada Unidade da Federação, com vistas ao emprêgo em suas missões específicas e como participantes da Defesa Territorial.

f) Cooperar no estabelecimento da legislação básica relativa às Polícias Militares.

 

7 Originalmente criado em 1998, por meio do Decreto nº 5.363:

O GOVERNADOR DO ESTADO DO PARANÁ, no uso das atribuições que lhe confere o art. 87, itens V e VI, da Constituição Estadual, e tendo em vista o disposto no art. 68 da Lei nº 6.774, de 08 de janeiro de 1976,
D E C R E T A :

Art. 1°. Fica criado, no âmbito da Polícia Militar do Paraná, o Grupo Especial de Trabalho denominado Ação de Grupo Unido de Inteligência e Ataque - GRUPO ÁGUIA, tendo por finalidade a prevenção e repressão do crime organizado, especialmente de assaltos a ônibus e roubos de veículos e cargas nas rodovias.

Art. 2°. O Grupo Especial de Trabalho, de que trata este Decreto, fica subordinado diretamente ao Comandante Geral da Polícia Militar, sendo composto, preferencialmente, por um Oficial Superior da Corporação, como Coordenador, e por Policiais Militares especialmente treinados.

Parágrafo único. Caberá ao Coordenador a responsabilidade pela seleção, treinamento e emprego dos componentes do GRUPO ÁGUIA.

Art. 3°. O GRUPO ÁGUIA contará com as equipes de inteligência, apoio técnico e de operações.

Art. 4°. As autoridades estaduais, militares e civis, solicitadas a prestar apoio ao GRUPO ÁGUIA, deverão fazê-lo de forma a atender às necessidades do mesmo.

Art. 5°. Fica o Comandante Geral da Polícia Militar do Paraná autorizado a praticar os atos necessários à regulamentação, implementação de meios e manutenção do GRUPO ÁGUIA, ajustando-o à estrutura operacional da Corporação, podendo, para isso, contar com apoio da iniciativa privada.

Art. 6°. Este Decreto entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.