CONCEITOS INTRODUTÓRIOS PARA ENTENDER A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E SUA UTILIDADE NA SEGURANÇA PÚBLICA

Thiago Ramos dos Santos. Mestre em Administração (CEFET-MG). Especialista em Inteligência de Segurança Pública (APM/PMMG). Bacharel em Administração Pública (UFLA). Policial Militar na PMMG.

Fabrício Molica de Mendonça. Doutor em Engenharia de Produção (UFRJ). Bacharel em Administração (UFV). Professor do Mestrado Acadêmico em Administração do CEFET-MG e do Mestrado Profissional PROFNIT (UFSJ).

 

 

CONCEITOS INTRODUTÓRIOS PARA ENTENDER A ATIVIDADE DE INTELIGÊNCIA E SUA UTILIDADE NA SEGURANÇA PÚBLICA

RESUMO

Este trabalho teve por objetivo apresentar uma introdução à atividade de inteligência e sua principal derivação, a inteligência de segurança pública, com seus conceitos, sua sistematização e relações com outras áreas do conhecimento. Para isso, realizou-se uma pesquisa qualitativa e descritiva, utilizando-se das técnicas da pesquisa bibliográfica e documental. A inteligência é um conhecimento produzido com insumos sigilosos, no todo ou em parte, processados pela mente de um analista de inteligência e voltado às necessidades de um tomador de decisão em circunstâncias específicas. Pode ser entendida como o conhecimento produzido, as organizações que atuam na atividade ou os processos de obtenção de dados e as metodologias de produção de conhecimento. Assim como outras áreas de estudo, a inteligência possui caráter multidisciplinar, uma vez que se relaciona com entes governamentais nas esferas políticas, econômicas e sociais.

Palavras-chave: Atividade de inteligência. Segurança pública. Introdução.

 

ABSTRACT

This work aimed to present an introduction to intelligence activity and its main derivation, public security intelligence, with its concepts, its systematization and relations with other areas of knowledge. For this, a qualitative and descriptive research was carried out, using the techniques of bibliographic and documental research. Intelligence is the knowledge produced with classified inputs, wholly or in part, processed by the mind of an intelligence analyst and aimed at the needs of a decision maker in specific circumstances. It can be understood as the knowledge produced, the organizations that act in the activity or the processes of obtaining data and the methodologies of knowledge production. Like other areas of study, intelligence has a multidisciplinary character, as it relates to governmental entities in the political, economic and social spheres.

Keyworks: Intelligence. Public security. Introduction.

 

 

1 INTRODUÇÃO

As organizações de segurança pública são compostas por inúmeros indivíduos e precisam tomar decisões o tempo todo para manter a segurança das pessoas e do patrimônio. Para isso, seus gestores precisam de informações oportunas para que, em um curto espaço de tempo, possam tomar boas decisões de forma a garantir sua missão constitucional.

No contexto das decisões do Estado, a atividade de inteligência possui papel fundamental na assessoria ao tomador de decisão, pois produz conhecimento de forma oportuna, abrangente e confiável, de acordo com as necessidades daquele que decide. A inteligência se refere à coleta, análise e disseminação de informações que, no todo ou em parte, não estão disponíveis em fontes convencionais. Somado a isso, através do ramo da contrainteligência, a atividade tem a função de atuar na neutralização da inteligência adversa, na salvaguarda do conhecimento sensível e na identificação de ameaças ou oportunidades (BRASIL, 2016; CEPIK, 2003; CANADA, 1996; PLATT 1974).

A segurança pública é uma ramificação do Estado que também faz o uso da atividade de inteligência. A atividade de Inteligência na esfera de Segurança Pública consiste na produção de conhecimento para subsidiar os tomadores de decisão no planejamento e na execução de ações relacionadas à atos criminosos que atentem à ordem pública, à incolumidade das pessoas e do patrimônio (BRASIL, 2021).

A inteligência de segurança pública (ISP) é fundamental para o desempenho satisfatório das instituições policiais, em que o conhecimento produzido pelas suas agências influencia diretamente a tomada de decisão, a otimização dos serviços e o emprego operacional do policiamento. Entretanto, no Brasil, há um descompasso entre a atividade de inteligência e os tomadores de decisão no campo da segurança pública, onde os gestores desconhecem as potencialidades dessa atividade e, consequentemente, não conseguem aproveitá-la, prejudicando a eficiência e a eficácia do processo decisório (ROCKEMBACH, 2017), visto que, o produto da inteligência não é para ser coletado e depois arquivado. Ele deve ir além do que apenas informar, ou seja, deve auxiliar as pessoas a tomarem decisões (LOWENTHAL, 2015).

Assim, a pesquisa tem como objetivo apresentar uma introdução à atividade de inteligência e sua principal derivação, a inteligência de segurança pública, com seus conceitos, sua sistematização e relações com outras áreas do conhecimento. Com o perpassar do texto, como objetivos específicos, será possível: 1) introduzir o leitor aos conceitos da atividade de inteligência, ISP e sua sistematização; 2) relacionar a atividade de inteligência com outras áreas do conhecimento, ampliando a compreensão do assunto de forma didática.

O estudo recorreu metodologicamente, como procedimento técnico, à pesquisa bibliográfica, a partir do material desenvolvido por outros autores sobre a temática, bem como a pesquisa documental, por meio das legislações que tratam sobre a atividade de inteligência, em geral, e sobre a inteligência de segurança pública, em específico.

Os conceitos apresentados estão contidos no referencial teórico da dissertação de Santos (2021), que pesquisou como os gestores públicos percebem e utilizam a inteligência como instrumento de assessoria dentro do processo decisório, no âmbito da segurança pública.

 

2 DESENVOLVIMENTO

2.1 Uma introdução à Atividade de Inteligência

A inteligência é uma atividade que envolve a coleta, a análise e a disseminação de informações, com vistas ao assessoramento das autoridades governamentais na tomada de decisão relativas à defesa do Estado, da sociedade e dos interesses nacionais. Tais informações devem ser oportunas, abrangentes e confiáveis, permitindo que o Estado faça frente às adversidades futuras, como também, identifique ameaças e oportunidades (BRASIL, 2016, 1999; CEPIK, 2003; PLATT 1974). Atualmente, a ameaça é o principal alvo e o maior motivo que justifica a existência da atividade de inteligência (SFETCU, 2019).

Basicamente, a atividade de inteligência se subdivide em dois ramos: inteligência e contrainteligência. A inteligência consiste em ações especializadas que resultam em conhecimentos com vistas ao assessoramento das autoridades governamentais durante o processo decisório. Já a contrainteligência objetiva a proteção e a neutralização contra a inteligência adversa, bem como a salvaguarda de dados, conhecimentos, pessoas, áreas e instalações de interesse da sociedade e do Estado (BRASIL, 2016).

Fora as pessoas que atuam na área da atividade de inteligência, pouco se sabe sobre ela por parte do público em geral (GONÇALVES, 2018; PLATT, 1974). O Relatório do Auditor Geral do Canadá, de 1996, define de forma clara e completa a atividade de inteligência. De acordo com o documento, o termo inteligência se refere ao conhecimento necessário ao Governo para suas tomadas de decisões que, no todo ou em parte, não estão disponíveis em fontes convencionais. Dessa forma, as coletas das informações necessárias são feitas com o uso de meios sigilosos, sendo esta a característica a que distingue inteligência de conhecimento.

No mesmo entendimento, Ferreira (2017) afirma que o conhecimento produzido pela atividade de inteligência se distingue dos conhecimentos gerados pelos outros instrumentos de assessoramento por ser composto, em parte, por dados e informações protegidas que são obtidos por técnicas específicas, próprias da atividade de inteligência.

As informações coletadas dessa forma podem ser utilizadas isoladas ou analisadas em combinação com outras informações disponíveis em fontes convencionais, como as mídias ou outras fontes de informações disponíveis ao tomador de decisão ou à própria agência de inteligência (CANADÁ, 1996).

Nesse contexto, Lowenthal (2015) e Sfetcu (2019) diferenciam inteligência de conhecimento, na medida em que aquela, necessariamente, envolve componentes sigilosos em sua produção. Além disso, a inteligência se refere ao conhecimento voltado às necessidades de um tomador de decisão, produzidas com o objetivo de preencher tal necessidade, em circunstâncias específicas. Logo, nem todo conhecimento é inteligência.

Um documento de inteligência tem a finalidade única de fornecer subsídios ao tomador de decisão, com o objetivo de esclarecer e contribuir para o processo decisório (LOWENTHAL, 2015). Dessa forma, a inteligência é um conhecimento que prescinde da oportunidade e deve conjecturar sobre um evento antes que ele aconteça, antecipando-se a ameaças ou oportunidades, e deve ser disponibilizado em um prazo que possa ser útil ao processo decisório (GONÇALVES, 2018). Empregar o termo inteligência agrega uma conotação prospectiva, uma antevisão de como uma situação pode evoluir no futuro (FERNANDES, 2006).

 

2.2 A Inteligência de Segurança Pública

A evolução e a modernização da atividade de inteligência, acompanhando a globalização tecnológica e as suas diversas formas de interação, deram origem a várias agências especializadas produtoras de informações em grande escala (ANTUNES, 2001; PLATT, 1974). Tais agências são derivações da inteligência de Estado, sendo a inteligência de segurança pública a mais desenvolvida devido à crescente necessidade de estratégias mais qualificadas para combater as atividades criminosas. Além de consultiva, a ISP se caracteriza como uma atividade de natureza executiva na produção de conhecimentos que potencializam a atuação dos órgãos de segurança pública (HAMADA, 2017; ROCKEMBACH, 2017).

Por segurança pública, a lei define como a preservação da ordem pública, a proteção do cidadão, da sociedade, do patrimônio público e privado, atuando na prevenção à criminalidade e a violência, bem como na promoção da integração social e na assistência social por meio da Defesa Civil. Tais atividades são realizadas pelas instituições policiais e pelos Corpos de Bombeiros no âmbito federal e estadual, podendo, também, os municípios constituírem Guardas Municipais (BRASIL, 1988).

Já a ISP, de acordo com a Política Nacional de Inteligência de Segurança Pública (PNISP), é uma atividade permanente e sistemática de ações especializadas para identificar, avaliar e acompanhar ameaças reais ou potenciais na segurança pública que atentem à ordem pública, à incolumidade das pessoas e do patrimônio. A ISP produz e salvaguarda os conhecimentos necessários para subsidiar os tomadores de decisão no planejamento, implementação e execução das políticas de segurança pública e das ações para prever, prevenir, neutralizar e reprimir atos criminosos de qualquer natureza (BRASIL, 2021).

Além de subsidiar os gestores no processo decisório, em todos os níveis – político, estratégico, tático e operacional, a ISP tem por finalidade contribuir para que o processo interativo entre os tomadores de decisão e os profissionais de Inteligência produza efeitos cumulativos, aumentando o nível de eficiência desses usuários e de suas respectivas organizações.

A atividade de ISP, assim como a atividade de inteligência, se subdivide nos ramos de inteligência e de contrainteligência. A inteligência destinada à produção de conhecimentos de interesse da segurança pública e a contrainteligência em produzir conhecimentos para neutralizar as ações adversas, e proteger a atividade e a instituição a que pertence. Os dois ramos são intrinsecamente ligados, não possuem limites precisos, uma vez que se interpenetram, se inter-relacionam e interdependem (BRASIL, 2009, 2021).

As espécies de ISP englobam: inteligência policial judiciária, inteligência policial militar, inteligência bombeiro militar e inteligência policial rodoviária. Importante também citar, nos desdobramentos atuais das atividades de segurança pública, a inteligência do sistema penitenciário e socioeducativos (HAMADA, 2017).

Embora a ISP seja considerada fundamental para o desempenho satisfatório das instituições, há um descompasso entre a atividade de inteligência e os tomadores de decisão no campo da segurança pública, onde os gestores desconhecem as potencialidades dessa atividade e, consequentemente, não conseguem aproveitá-la, prejudicando a eficiência e a eficácia do processo decisório, uma vez que o produto da inteligência não é para ser coletado e depois arquivado. Ele deve ir além do que apenas informar, ou seja, deve auxiliar as pessoas a tomarem decisões (ROCKEMBACH, 2017; LOWENTHAL, 2015).

A inteligência é apontada como uma das principais soluções para as crises no campo da segurança pública. Contudo, para que a ISP seja utilizada de forma efetiva no processo decisório, ela precisa ser encarada com mais profissionalismo e seriedade no país. Ao mesmo tempo, é necessário desenvolver a mentalidade de inteligência nos altos gestores da segurança pública, o que deve ser encarado como um desafio contínuo que envolva a sensibilização, conscientização e capacitação dos tomadores de decisão (ROCKEMBACH, 2017).

 

2.3 A sistematização da atividade de inteligência

A produção do conhecimento de inteligência é a ação que um profissional de inteligência executa quando recebe a demanda de produzir conhecimento sobre determinado assunto. Significa o processo pelo qual as informações coletadas são transformadas em conhecimento para a utilização do tomador de decisão em nível de ação (PLATT, 1974).

Para melhor entender essa definição, recorre-se à Sherman Kent (1967), o primeiro autor que sistematizou a atividade de inteligência, sob a ótica acadêmica, em três concepções: como conhecimento (produto), como organização e como atividade (processo). Essa definição é a mais aceita e utilizada pelos estudiosos e profissionais da área até os tempos atuais.

 

Quadro 1 – Sistematização da atividade de inteligência.

Acepções de inteligência segundo Sherman Kent

 

Produto (conhecimento)

Inteligência

Processo (atividade)

 

Organização (serviço secreto/sigiloso)

Fonte: (GONÇALVES, 2018, p. 9).

 

Inteligência como produto é o resultado do processo de produção de conhecimento que tem como cliente o tomador de decisão. O documento produzido com base na metodologia de inteligência também é chamado de inteligência e tem por finalidade prover, com um conhecimento diferenciado, um determinado usuário, auxiliando-o no processo decisório (GONÇALVES, 2018; FERNANDES, 2006).

Inteligência como organização são as estruturas funcionais que têm como missão a obtenção de informações e a produção de conhecimento de inteligência. Pode ser uma organização como um todo, um sistema que integra vários órgãos com o mesmo objetivo ou um setor de alguma organização encarregado desta atividade (GONÇALVES, 2018; FERREIRA, 2017).

Inteligência como atividade ou processo são os meios pelos quais certos tipos de informações são requeridos, reunidos, analisados e difundidos, incluindo os processos de obtenção de dados negados e as metodologias de produção de conhecimento de inteligência (PLATT, 1974).

Resumidamente, na tríplice concepção apresentada, inteligência é o conhecimento produzido (produto), as organizações que atuam na atividade e na sua salvaguarda (organização), e a metodologia de produção de conhecimento, característica da atividade (processo).

O processo de produção de conhecimento de inteligência envolve a reunião acurada e sistemática dos fatos, sua análise, com avaliações céleres e claras, e sua disseminação aos tomadores de decisão. Além disso, deve ser rigoroso, oportuno e relevante para as necessidades e interesses daqueles que decidem (GONÇALVES, 2018).

Para atingir o objetivo de ajudar, informar e contribuir com o processo decisório, as informações devem ser processadas pela mente de um analista. Os processos de coleta de dados, incluindo os sigilosos, necessitam de um envolvimento humano para dá-los sentido e transformar as informações em conhecimento específico para as diferentes demandas dos solicitantes. A inteligência realiza análises contínuas que permitem entender o problema ou a situação de um contexto sociocultural, onde certas informações são protegidas, de forma a deixar o tomador de decisão em condições de agir. Caso contrário, o produto da inteligência permanecerá apenas como informação (SFETCU, 2019).

Por isso, um profissional da atividade de inteligência não pode ser qualquer um. As agências de inteligência são constituídas de especialistas dedicados em uma unidade de produção de conhecimento vigorosa, que necessitam ter conhecimento básico sobre diversos assuntos, como história contemporânea, geografia, economia, ciência política, psicologia social, métodos de pesquisa em ciências sociais e redação de documentos, além de formação específica, treinamento continuado e experiência na área de inteligência. Basicamente, na teoria, os profissionais de inteligência são divididos em analistas e agentes. Os analistas são responsáveis pela produção do conhecimento e os agentes pela obtenção dos dados negados (PLATT, 1974; KENT, 1967).

Em outras palavras, os serviços de inteligência não são compostos por instituições robóticas, mas sim, por várias pessoas que executam a atividade. No ambiente de ISP, um agente deve conhecer a metodologia e os procedimentos próprios da atividade, ao mesmo tempo em que as agências de inteligência devem se adaptar as novas tecnologias, métodos, técnicas, conceitos e processos. Assim, a ISP pode produzir conhecimentos até por iniciativa, objetivando a identificação de oportunidades ou a antecipação às ameaças (SFETCU, 2019; BRASIL, 2016).

A dependência de conhecimentos multidisciplinares pelos profissionais de inteligência, mesmo que de forma básica, faz com que a atividade tenha, na literatura, suas características comparadas a outras áreas do conhecimento, que serão exploradas na sequência como forma de enriquecer a leitura sobre o tema.

 

2.4 A atividade de inteligência e as áreas do conhecimento

Um gestor público necessita lidar com inúmeras demandas da sociedade e diversos interesses da nação. Para isso, necessita de informações de diferentes áreas do conhecimento que sejam aplicáveis nas políticas públicas.

Por isso, as organizações de inteligência devem se parecer com universidades, onde a mentalidade de pesquisa e o rigor científico são características vitais (KENT, 1967). Mais do que o perfil acadêmico, a atividade de inteligência deve ser um misto com a expertise técnica, necessária às operações de obtenção dos dados, que também possui características da arte (GONÇALVES, 2018), da oportunidade do jornalismo, do patriotismo e dedicação dos militares (PLATT, 1974) e dos métodos dos historiadores, utilizando profissionalmente todas essas características para estabelecer uma relação confiável dentro da comunidade (TRAHAIS; MILLER, 2012).

A inteligência é uma profissão antiga, cheia de peculiaridades e dificuldades, que evoluiu mais por tentativas e erros do que pelo estudo sistemático, que é recente. No início, não houve tempo para a criação de uma doutrina comum para instrução e aperfeiçoamento dos métodos. Os profissionais da área de inteligência não tinham um padrão de formação profissional ou acadêmica e tinham como característica em comum a alta dedicação (PLATT, 1974).

A partir do fim da Segunda Guerra Mundial a inteligência se tornou atividade permanente nas grandes potências mundiais e passou a recorrer ao uso das técnicas científicas para a resolução dos problemas (ANTUNES, 2001; RANDOM, 1958).

Random (1958) e Platt (1974) relacionaram a atividade de inteligência com as ciências sociais. Para os autores, a inteligência precisa dela, ao mesmo tempo em que é capaz de contribuir para com a mesma. Além disso, afirmam que métodos desenvolvidos e usados em outras áreas do conhecimento, como as ciências exatas e até na produção literária histórica, podem se aplicar à produção de inteligência. Sfetcu (2019) ainda relaciona as características da atividade de inteligência com as atividades de arqueologia, gestão e até medicina, além da científica, citada anteriormente.

Tanto a análise de inteligência quanto a ciência social se concentram no conhecimento adquirido a partir de observações empíricas e compartilham algumas características como a resolução de problemas, a descoberta, o uso hábil de ferramentas, a objetividade, a interpretação lógica, a formulação e o teste de hipóteses. Também, ambos têm o desafio de apresentar seu produto acabado de forma clara e interessante a seu destinatário (SFETCU, 2019; PLATT, 1974; RANDOM, 1958).

O que caracteriza ou diferencia a atividade de inteligência é que ela se trata de uma atividade oficial de Estado que trabalha com dados sigilosos. Tais peculiaridades, no entanto, não justificam considerar a inteligência como uma ciência separada (RANDOM, 1958). Apesar das similaridades, Sfetcu (2019) e Platt (1974) também destacam alguns antagonismos existentes entre ciência e inteligência (Quadro 2).

 

Quadro 2 – Antagonismos entre ciência e inteligência.

Ciência

Inteligência

Coleta de grandes quantidades de informações para obter resultados significativos.

O tamanho das amostras relevantes é extremamente pequeno, geralmente apenas algumas fontes separadas.

Pequenos conjuntos de dados geralmente são rejeitados devido à incerteza estatística.

Volumes gigantescos de dados são coletados, mas a seleção de informações relevantes é um processo difícil.

Os pesquisadores geralmente mantêm os dados originais, que são examinados diretamente, garantindo assim um alto grau de confiabilidade e segurança.

Os dados e as informações raramente chegam aos analistas em primeira mão. Até a identidade de certas pessoas pode ser incerta.

Em geral, os métodos de pesquisa garantem alto grau de imparcialidade. Os dados não são conscientemente afetados pelos preconceitos dos cientistas.

Os dados e as informações são deliberadamente manipulados com a intenção de distorcer a realidade, com desinformação, inserção de dados falsos ou técnicas afins.

O pesquisador escreve sobre um assunto de seu conhecimento profissional ou de formação, dedica um largo tempo à pesquisa teórica e de campo, ou laboratório, com a intenção de ampliar as fronteiras do conhecimento humano.

Um analista também busca a ampliar o conhecimento sobre determinado assunto que pode não ser de seu conhecimento de formação e variar desde um assunto restrito, como a construção de uma edificação, a um assunto extremamente amplo, como a probabilidade da eclosão de uma guerra em um continente.

Ao fim da pesquisa, sua utilização é uma consideração secundária, que tem a possibilidade de acontecer.

Um documento de inteligência tem a única finalidade de ser útil ao tomador de decisão nas circunstâncias existentes. Muitas das vezes, é preciso sacrificar o desejo de produzir um documento completo e preciso, em razão da oportunidade.

Pesquisas científicas constam o nome dos pesquisadores.

Documentos de inteligência não constam o nome dos autores do conhecimento, apenas da agência de inteligência.

Apresentação de forma escrita, formal, culta.

Pode ser apresentada até de forma oral, dependendo da necessidade, grau de sigilo ou tempo disponível.

Estudo do objeto a partir de um ângulo determinado, resultando em uma conclusão única.

Análise do objeto através de vários ângulos diferentes. Pode não produzir uma conclusão única. Muitas respostas situam-se na área cinzenta.

Fonte: Adaptado de Sfetcu (2019) e Platt (1974).

 

Uma limitação da profissão, devido ao caráter reservado da atividade e do uso do conhecimento restrito ao tomador de decisão, é a dificuldade de se criar uma reputação que possa ser externalizada para outra área de atuação (PLATT, 1974).

Deixada as correlações com a pesquisa científica, Sfetcu (2019) também comparou a atividade de inteligência com a arqueologia. Ambas envolvem a coleta de evidências para criar uma imagem mais completa possível de seu objeto de trabalho. Algumas partes não são percebidas no início e nem todas as peças necessárias estão disponíveis. Nessa situação, os vieses cognitivos do analista aparecem, ciente que seus dados estão incompletos, e outros métodos são utilizados para testar hipóteses e gerar cenários alternativos, que serão apresentados ao tomador de decisão.

Em continuidade às comparações, o autor também relaciona a atividade de inteligência com a medicina. A prática médica para diagnosticar uma doença é parecida com a inteligência. Ambas as disciplinas aplicam abordagens semelhantes para obter informações, partindo de pressupostos gerais e, à medida que mais informações são coletadas, o profissional se torna mais confiante em sua avaliação. Tanto o médico, como o analista de inteligência, não são apenas observadores neutros que apenas coletam e analisam os fatos.

Nas duas áreas, o processo diagnóstico envolve considerações além das científicas ou estruturadas de maneira típica, mas que estão relacionadas à experiência dos profissionais, denominada de conhecimento pessoal. O médico, por exemplo, observa os sintomas do paciente e, usando seu conhecimento especializado do corpo, gera uma hipótese para explicar suas observações. A partir da hipótese, segue-se com exames para coletar informações adicionais para testá-la e fechar um diagnóstico (SFETCU, 2019).

Na sequência, apresenta-se a comparação entre a inteligência de Estado e a inteligência competitiva, ou seja, aquela utilizada pelas empresas privadas e que muito se assemelham e se relacionam em seus métodos.

 

2.4.1 Inteligência de Estado e a inteligência empresarial

A inteligência, inicialmente característica tradicional das organizações governamentais, cada vez mais passa a ser utilizada por empresas privadas que se inspiraram e adaptaram o modelo de serviço de inteligência ao mundo empresarial para ajudar a planejar suas próprias estratégias, utilizando semelhante modelo de produção do conhecimento para que os tomadores de decisão se antecipem às ameaças e oportunidades no mundo dos negócios (SFETCU, 2019).

De acordo com Thahais e Miller (2012), foi durante a Guerra Fria, com a especialização da atividade de inteligência, que se iniciou as parcerias de profissionais da área com escritores para edição de livros e consultorias para empresas privadas e organizações não governamentais.

A atividade de inteligência no meio privado recebe o nome de inteligência privada, inteligência competitiva ou inteligência empresarial. Além disso, emprega muitos profissionais com experiência na atividade de inteligência tradicional. Sfetcu (2019) alerta que, atualmente, o investimento e o desenvolvimento da inteligência são mais intensos no setor privado, com um forte uso de tecnologia da informação, por exemplo, ao ponto de a inteligência tradicional passar a apropriar de teorias e técnicas desenvolvidas no campo da inteligência competitiva. As empresas enfrentam um ambiente de negócios altamente competitivo, onde reconhecem, cada vez mais, o uso da informação como um dos diferenciais estratégicos mais importantes que os gestores possuem (CRUZ; VASCONCELOS, 2018).

A inteligência competitiva, por definição, consiste em produzir conhecimento sobre clientes, concorrentes, tecnologias, dados macroeconômicos e qualquer aspecto ambiental necessário para auxiliar executivos e gerentes na tomada de decisões estratégicas de uma organização e na identificação de riscos e oportunidades em seus mercados (SFETCU, 2019). Para ser eficaz, a atividade deve ser contínua e sistemática, envolvendo a coleta legal e a ética de informações, que não se confunde com a espionagem industrial, seguidas de análises controladas e disseminação de inteligência acionária para decisão. Quando a informação é coletada, analisada com um objetivo específico e utilizada como subsídio no processo decisório, significa que houve o emprego da inteligência (CRUZ; VASCONCELOS, 2018).

Percebe-se, pela revisão bibliográfica em ambos os setores de inteligência, que o setor privado tem um maior investimento em inteligência, quando se refere à questão de coleta de dados, que se deve à evolução das tecnologias de informação referentes à captação e armazenamento de dados, o que pode não refletir diretamente em uma melhor capacidade de produção de inteligência, que necessita da atuação dos analistas para dar significado ao conhecimento de acordo com a necessidade do tomador de decisão.

O intuito das comparações da atividade de inteligência com outras áreas do conhecimento foi demonstrar o seu caráter multidisciplinar. Conforme afirma Hamada (2017), os procedimentos de coleta de dados e de processamento e análise das informações são aplicados a inúmeros campos de atuação, fazendo com que a inteligência se relacione com entes governamentais nas esferas políticas, econômicas e sociais.

 

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do texto foi apresentar uma introdução à atividade de inteligência e sua principal derivação, a inteligência de segurança pública com seus conceitos, sua sistematização e relações com outras áreas do conhecimento. Para isso, foi realizada uma pesquisa qualitativa e descritiva, utilizando-se das técnicas da pesquisa bibliográfica e documental. Por consequência, almeja-se atrair mais estudiosos que possam contribuir academicamente com a atividade de inteligência e suas vertentes.

A inteligência é um conhecimento produzido com insumos sigilosos, no todo ou em parte, processados pela mente de um profissional de inteligência e voltado às necessidades de um tomador de decisão em circunstâncias específicas. Basicamente, os profissionais de inteligência são divididos em analistas e agentes.

Em síntese, na tríplice concepção apresentada, inteligência pode ser entendida como o conhecimento produzido (produto), as organizações que atuam na atividade e na sua salvaguarda (organização), e a metodologia de produção de conhecimento, característica da atividade (processo).

Para melhor compreender a dinâmica da inteligência, apresentou-se algumas relações da atividade com a medicina e a arqueologia, por exemplo, e suas semelhanças e antagonismos com a pesquisa científica. Por fim, distinguiu-se e conceituou-se inteligência de Estado e inteligência empresarial, onde esta se destaca pelo investimento em tecnologia da informação e aquela pela atuação de seus analistas em dar significado aos dados de acordo com a necessidade do gestor.

Assim como outras áreas de estudo, a inteligência possui caráter multidisciplinar, uma vez que se relaciona com entes governamentais nas esferas políticas, econômicas e sociais.

 

REFERÊNCIAS

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