A INTER-RELAÇÃO ENTRE O PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR E O PROCESSO CRIMINAL, QUANTO AOS DESVIOS DE CONDUTA DO SERVIDOR PÚBLICO

NADIB NASSIF PALMA 1

 

RESUMO: O presente artigo trata do paralelo que existe, e deve existir, entre o processo administrativo disciplinar e o processo penal, quando da apuração e aplicação de sanção aos desvios de conduta do servidor público, mais especificamente no que toca às garantias constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa e, por corolário, a necessidade de justa causa para a instauração do processo administrativo em face do servidor.

Palavras-chave: Inter-relação,processo administrativo disciplinar, processo criminal, conduta, servidor público.

 

INTRODUÇÃO

O Processo Administrativo Disciplinar compreende três fases, a instauração, o inquérito administrativo dividido em instrução, defesa e relatório, e o julgamento. Se a Autoridade Administrativa não tiver elementos suficientes para instaurar o Processo Administrativo Disciplinar, quer por dúvidas quanto à autoria do fato ou por quanto a irregularidade ou não no serviço público procederá à investigação preliminar, consoante Lei Complementar Estadual n°14/82 - Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná 2 - e a sindicância, no caso da Lei Federal n°8.112/90 – Regime Jurídico Único 3 - que de toda forma estará inclusa nos autos do processo administrativo disciplinar, a sindicância também é utilizada para a aplicação de punição quando o ato não exigir, expressamente, o Processo Administrativo.

Problema que traz bastante controvérsia diz respeito às esferas de responsabilidades quanto o ilícito praticado pelo servidor é sancionado também na esfera do direito penal. O que fazer se o juízo criminal absolver o servidor ou condená-lo sentenciando de forma contrária à instância administrativa? Há ou não comunicabilidade de instâncias?

Analisando o problema sob o ângulo de condenação no juízo criminal e absolvição na instância administrativa, a solução é bastante simples: Quando o agente for condenado na esfera criminal, o juízo cível e a Administração Pública não podem divergir da decisão supramencionada, ocorrendo a comunicabilidade de decisões face ao artigo 1.525 da Lei Substantiva Cível 4.

Quanto à absolvição no juízo criminal, a solução se configura de forma mais complicada, no caso de haver condenação na instância administrativa, existem, entretanto, dois casos em que a sentença no juízo penal vincula a autoridade administrativa a decidir de forma idêntica:

I – Estar provada a inexistência do fato (face ao artigo 1.525 do CC);

II – Negativa de Autoria (de acordo com artigo 65 do CPP).

 

A relevância desse trabalho justifica-se em razão da doutrina e da jurisprudência caminharem apenas no sentido da necessidade de justa causa para a instauração do procedimento criminal, sob pena de seu trancamento, via habeas corpus. Sucede, que firmes posicionamentos são utilizados para defender, com toda razão, a necessidade de justa causa, para instauração do inquérito policial e até mesmo o próprio processo penal não direcionou até agora, também os seus valiosos focos para o procedimento disciplinar. Ora, apesar de serem autônomos e independentes, existe forte semelhança entre o processo penal e o procedimento disciplinar.

 

1. FINALIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.

De acordo com Hely Lopes Meirelles, Processo Administrativo Disciplinar "é o meio de apuração e punição de faltas graves dos servidores públicos e demais pessoas sujeitas ao regime funcional de determinados estabelecimentos da Administração" 5.

Por "falta grave" pode-se entender como um ilícito administrativo que nada mais é que a quebra a um dos interesses públicos da Administração. São as denominadas "infrações funcionais", condutas que são tipificadas como infrações administrativas nos respectivos estatutos dos servidores públicos, passíveis de punição, ainda que não sejam consideradas crimes, eis que podem ser tão somente transgressões aos deveres da função, por exemplo.

O Poder Disciplinar tem origem e razão de ser no interesse e na necessidade de aperfeiçoamento progressivo do serviço público 6. O pré-falado pode ser conceituado como a força inerente à Administração Pública de apurar irregularidades e infligir sanções a pessoas adstritas ao regime disciplinar dos órgãos e serviços públicos.

O mencionado Poder tem taxinomia discricionária, no que tange estritamente a possibilidade de aplicação de penas. Daí, a possibilidade da Administração, usando critérios objetivos para analisar qual a punição que é adequada à falta do servidor, desde que dentro da enumeração legal taxativa 7, advertência 8; suspensão; demissão; cassação de aposentadoria ou disponibilidade; destituição de cargo em comissão; destituição de função comissionada).

Na órbita federal é imprescindível o processo administrativo disciplinar para aplicação das penas de suspensão superior a trinta dias, demissão, cassação de aposentadoria e disponibilidade, e destituição do cargo em comissão 9.

Segundo Francisco Campos 10, já na década de 1960, in verbis:

" Parece-nos fora de dúvida que o funcionário a que se aplicou a sanção administrativa por fato qualificado de delituoso na lei penal, se absolvido na instância criminal, pela inexistência dos fatos, adquire direito a que se declare insubsistente a sanção administrativa que lhe foi aplicada por força ou em virtude da imputação a ele irrogada em inquérito administrativo (Rectius: Processo Administrativo Disciplinar)

Neste Sentido, o Pretório Excelso já decidiu de forma idêntica:

"Se a Decisão absolutória proferida no juízo criminal não deixa resíduo a ser apreciado na instância administrativa, não há como subsistir a pena disciplinar" (STF, in RDA 123/216).

No caso em que a absolvição criminal se dá por não haver prova da existência do fato; não haver prova de ter o réu concorrido para a infração penal, não existir prova suficiente para a condenação; não repercutem na esfera administrativa as decisões pois as provas que não são suficientes para comprovar um ilícito penal, podem ser suficientes para comprovar um ilícito administrativo.

E no caso de decisão negativa por não constituir o fato infração penal? Tendo em vista que o ilícito administrativo pode corresponder a uma infração disciplinar que não constitui crime, por não afetar os bens fundamentais da vida em sociedade, ainda assim a punição deve subsistir face a autonomia do processo disciplinar 11.

 

2. FASES E CARACTERÍSTICAS DO PROCESSO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR.

O processo administrativo disciplinar - PAD (lato sensu) abrange a sindicância administrativa e o processo administrativo disciplinar (stricto sensu), nos termos do art. 143 da Lei n.º 8.112/90 ( Regime Jurídico Único), na Lei Complementar Estadual n°14/82 (Estatuto da Polícia Civil do Paraná), nos termos dos arts.241 e 243 .

O PAD se desenvolve nas seguintes fases (Lei n.º 8.112/90, art. 151, incs. I, II e III): instauração, com a publicação do ato que constituir a comissão; inquérito administrativo, que compreende instrução, defesa e relatório e julgamento.

Esse tipo de processo administrativo não tem por finalidade apenas apurar a culpabilidade do servidor acusado de falta, mas, também, oferecer-lhe oportunidade de provar sua inocência, corolário do direito de ampla defesa.

A Formulação do DASP n.º 215 menciona que o processo administrativo disciplinar não visa apenas a apurar infrações, mas também a oferecer oportunidade de defesa ao acusado.

De acordo com Hely Lopes Meirelles 12, o processo administrativo disciplinar obedecerá, também, ao princípio do contraditório. O princípio da garantia de defesa está assegurado no inciso LV do art. 5º da Lex Mater, juntamente com a obrigatoriedade do contraditório, como decorrência do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV), que tem origem no due process of law do direito anglo-norte-americano. O processo administrativo disciplinar obedecerá, também, ao princípio do contraditório, assegurado ao acusado a ampla defesa, com a utilização dos meios e recursos admitidos em direito (Constituição Federal, art. 5º, inc. LV e Lei n.º 8.112/90, arts. 143 e 153).

Paulo Tadeu Rodrigues Rosa assevera que “A Lei existe para ser cumprida e observada, e quando esta é violada surge para o Estado o direito de punir o infrator, que poderá ter o seu jus libertatis cerceado, ou ainda perder os bens que conquistou no decorrer da vida. Mas, o direito de punir, jus puniendi, pressupõe o direito de defesa que deve ser amplo e irrestrito”.

A Constituição Federal no art. 5.º, LV, assegura aos acusados e ao litigantes em geral, em processo judicial ou administrativo, o direito a ampla e contraditório, com todos os recursos a ela inerentes. Apesar da clareza do Texto Constitucional, e da sua auto-aplicabilidade, norma de eficácia plena, alguns administradores ainda insistem em não lhe dar cumprimento. O Estado deve punir o infrator, pois age em defesa da sociedade, que por meio de um contrato social concedeu a este certos poderes, que o diferenciam das demais pessoa. Mas, o contrato que foi celebrado não autoriza a presença do arbítrio, o uso da força desprovido de justificativa.

O contraditório tornou-se a partir de 1988 a regra e não a exceção. O funcionário público tem o direito líquido e certo de exercer por meio de profissional devidamente qualificado a sua ampla defesa. Ao administrador cabe cumprir a lei e não questioná-la. Caso entenda que a lei possua algum vício deve provocar o Poder Judiciário para que este se pronuncie a respeito da questão. Caso contrário, a lei produz todos os efeitos, ou como ensinam os romanos, dura lex sed lex, dura é a lei, mas é a lei” 13.

Alexandre Moraes 14 preleciona que, embora no campo administrativo, não exista necessidade de tipificação estrita que subsuma rigorosamente a conduta à norma, a capitulação do ilícito administrativo não pode ser tão aberta a ponto de impossibilitar o direito de defesa, pois nenhuma penalidade poderá ser imposta, tanto no campo judicial, quanto nos campos administrativos ou disciplinares, sem a necessária amplitude de defesa.

A Constituição Brasileira de 1988 prestigiou os instrumentos de tutela jurisdicional das liberdades individuais ou coletivas e submeteu o exercício do Poder Estatal - como convém a uma sociedade democrática e livre - ao controle do Poder Judiciário inobstante estruturalmente desiguais, as relações entre o Estado e os indivíduos processam-se, no plano de nossa organização constitucional, sob o império estrito da lei. A rule of law, mais do que um simples legado histórico-cultural, constitui no âmbito do sistema jurídico vigente no Brasil, pressuposto conceitual do Estado Democrático de Direito e fator de contenção do arbítrio daqueles que exercem o poder.

É preciso evoluir, cada vez mais, no sentido da completa jurisdicionalização da atividade estatal e fortalecer o postulado da inafastabilidade de toda e qualquer fiscalização judicial. A progressiva redução e eliminação dos círculos de imunidade do poder há de gerar, como expressivo efeito, a interdição de seu exercício abusivo.

O mandado de segurança desempenha, nesse contexto, uma função instrumental do maior relevo. A impugnação judicial de ato disciplinar, mediante utilização desse Writ constitucional, legitima-se em face de três situações possíveis, decorrentes (1) incompetência da autoridade, (2) da inobservância das formalidades essenciais e (3) da ilegalidade da sanção disciplinar. A pertinência jurídica do mandado de segurança, em tais hipóteses, justifica a admissibilidade do controle jurisdicional sobre a legalidade dos atos punitivos emanados da Administração Pública no concreto exercício do seu poder disciplinar no que os Juizes e Tribunais somente não podem examinar nesse tema, até mesmo como natural decorrência do Princípio da separação de Poderes, são a conveniência, a utilidade, a oportunidade e a necessidade da punição disciplinar. Isso não significa, porém, a impossibilidade de o Judiciário verificar se existe, ou não, causa legítima que autorize a imposição da sanção disciplinar. O que se lhe veda, nesse âmbito, e, tão-somente, o exame do mérito da decisão administrativa, por tratar-se de elemento temático inerente ao Poder Discricionário da Administração Pública, todavia, todo e qualquer ato administrativo, seja de onde advier - Poder Legislativo, Executivo ou Judiciário – tem requisitos a serem cumpridos para ter validade e eficiência em sua expedição, nunca perdendo de vista a finalidade do ato, qual seja, satisfazer o interesse público, e um dos requisitos mais importantes é o motivo que fomentou o ato administrativo, ou seja, os pressupostos fáticos e de direito que estribaram o ato, mormente nos atos discricionários. Neste diapasão, para que se verifique a legitimidade dos atos administrativos, especialmente neste tocante – motivo – a Doutrina e Jurisprudência dominantes admitem o controle jurisdicional, vale a pena transcrever a manifestação, neste sentido, do eminente doutrinador Caio Tácito, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello 15 :

"Se inexiste o motivo, ou se dele o administrador extraiu conseqüências incompatíveis com o princípio de direito aplicado, o ato será nulo por violação da legalidade. Não somente o erro de direito, como o erro de fato autorizam a anulação jurisdicional do ato administrativo.
Negar ao Juiz a verificação objetiva da matéria de fato, quando influente na formação do ato administrativo, será converter o Poder Judiciário em mero endossante da autoridade administrativa, substituir o controle da legalidade por um processo de referenda extrìnseco”
Em repetidos pronunciamentos, os nossos tribunais têm modernamente firmado o critério de que a pesquisa da ilegalidade administrativa admite o conhecimento pelo Poder Judiciário das circunstâncias objetivas do caso. Ainda recentemente, em acórdão no RE 17.126, o STF exprimiu, em resumo modelar, que cabe ao Poder Judiciário apreciar a realidade e a legitimidade dos motivos em que se inspira o ato discricionário da Administração”.

A nova Constituição do Brasil instituiu, em favor dos indiciados em processo administrativo, a garantia do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios a ela inerentes – art. 5º, LV 16. O legislador constituinte consagrou, em norma fundamental, um direito do servidor público, oponível ao poder estatal. A explícita constitucionalização dessa garantia de ordem jurídica, na esfera do procedimento administrativo-disciplinar, representa um fator de clara limitação dos poderes da Administração Pública e da correspondente intensificação do grau de proteção jurisdicional dispensada aos direitos dos agentes públicos” 17.

O processo administrativo disciplinar será conduzido por comissão disciplinar composta de 03 (três) servidores estáveis, designados pela autoridade competente instauradora, que indicará dentre eles, o seu Presidente, que deverá ser ocupante de cargo efetivo superior ou de mesmo nível, ou ter nível de escolaridade igual ou superior ao do indiciado.(Lei n.º 8.112/90, art. 149). O parágrafo 1º desse artigo acrescenta que a comissão processante terá como Secretário servidor público designado pelo seu Presidente, podendo a indicação recair em um dos seus membros.

Não poderá participar de comissão de sindicância administrativa ou de processo administrativo disciplinar, cônjuge, companheiro ou parente do acusado, consangüíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau (Lei n.º 8.112/90, art. 149, parágrafo 2º).

No âmbito do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, existem duas modalidades de processo disciplinar, sempre respeitando as garantias do autor da infração funcional, como o devido processo legal, o contraditório e ampla defesa. São eles: a sindicância, em que pese, por conceito, não pudesse desaguar em aplicação de sanção, mas que é procedimento utilizado para apuração de responsabilidade pela prática de fato constitutivo de transgressão disciplinar a que se cominem as penas de advertência, repreensão, suspensão, destituição de função e remoção compulsória, observados o rito do contraditório e ampla defesa, conhecidas a autoria e materialidade, será instaurada de ofício pelo Corregedor-Geral da Polícia Civil, ou por determinação do Governador do Estado, Secretário de Estado de Segurança Pública, Conselho da Polícia Civil e Delegado Geral da Polícia Civil (Estatuto do Polícia Civil do Estado do Paraná, art.241); o processo disciplinar, o qual precederá as penas de demissão, cassação de aposentadoria e de disponibilidade, será instaurado por determinação das mesmas autoridades susomencionadas e também obedecerá os princípios do contraditório e a ampla defesa (Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, art.243).

A designação de agente público para integrar comissão de processo administrativo disciplinar constitui encargo de natureza obrigatória, exceto nos casos de suspeições e impedimentos legalmente admitidos no Código de Processo Penal – CPP (Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, art.243, parágrafo 1°).

A comissão disciplinar deverá exercer suas atividades apuratórias com independência e imparcialidade, assegurado o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da Administração Pública, conforme determina o art. 150 da Lei n.º 8.112/90.

A portaria instauradora do processo administrativo disciplinar conterá o nome, cargo e matrícula do servidor público e especificará, de forma resumida e objetiva, as irregularidades a serem apuradas, bem como determinará a apuração de outras infrações conexas que emergirem no decorrer do apuratório.

Não constitui nulidade do processo a falta de indicação, na portaria de designação da comissão, dos ilícitos administrativos e correspondentes dispositivos legais e dos possíveis autores, o que se não recomenda inclusive para obstar influências do trabalho da comissão de disciplina ou alegação de presunção de culpabilidade 18.

No caso do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, o ato instaurador do processo disciplinar compete ao Corregedor-Geral da Polícia Civil (art.243, parágrafo 4°), após este designará Delegado de Polícia, escolhido dentre os estáveis, preferencialmente da classe mais elevada (art.244).

O ato que instaurar o processo disciplinar, deverá conter a descrição do fato a ser apurado, a identificação do servidor a ser processado e o enquadramento.

A portaria instauradora delimita o alcance das acusações, devendo a comissão processante ater-se aos fatos ali descritos, podendo, entretanto, alcançar outros fatos quando vinculados com as irregularidades administrativas nela discriminadas.

Ressalte-se que no Processo Administrativo Disciplinar, regulamentado pelo Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, desde a publicação da portaria instauradora do processo disciplinar, o servidor público a quem se atribui as irregularidades funcionais é denominado acusado.

José Armando da Costa assinala que “no processo disciplinar, o acusado encontra-se em relação ao indiciado na mesma situação em que, no processo criminal, o acusado está para o pronunciado” 19.

O art. 152 da Lei 8.112/90 fixa o prazo para a conclusão do processo administrativo disciplinar que não excederá 60 (sessenta dias), contados da data da publicação da portaria de constituição da comissão de disciplina, admitida a sua prorrogação por igual prazo, quando as circunstâncias o exigirem.

Por outro lado se forem esgotados os 120 (cento e vinte dias) a que alude o art. 152 da Lei n.º 8.112/90, sem que o processo administrativo disciplinar tenha sido concluído, a autoridade instauradora deverá designar um novo trio processante para refazê-lo ou ultimá-lo, a qual poderá ser integrada pelos mesmos ou por outros servidores, nos termos da Formulação do DASP n.º 216.

“Importa dizer, portanto, que se verificando a superação dos prazos previstos para o encerramento dos procedimentos disciplinares em lei regulados, ter-se-á necessariamente que concluir pela imprestabilidade do trabalho realizado, surgindo daí a necessidade de designar-se nova comissão – a ser integrada pelos mesmos ou por outros membros – a fim de que seja reiniciada toda a atividade de apuração administrativa” 20.

Verifica-se que em alguns casos, as normas punitivas do processo disciplinar se aproximam dos princípios do direito repressivo. Isso porque, quando um fato tem a natureza de infração disciplinar, pode ao mesmo tempo desencadear um processo crime, por ofender os interesses sociais gerais prevenidos nas leis penais. A responsabilidade penal abrange os crimes de contravenção imputados aos servidores, nessa qualidade.

O Estatuto do Servidor Público Federal é claro em estipular a tríplice responsabilidade do servidor:

Art. 121 - O servidor responde civil, penal e administrativamente pelo exercício irregular de suas atribuições.” Portanto, como já dito, pode um fato disciplinar punível desencadear também responsabilidade criminal do servidor. Sendo certo, que a justa causa para a instauração do processo penal também deverá estar presente no âmbito disciplinar, pois a Constituição Federal garante o direito à inviolabilidade da honra, da vida privada e do cidadão, sem distinguir, se ele é ou não servidor público.

 

A existência da justa causa é condição sine qua non para a instauração do inquérito administrativo, pois sem elementos materiais, não pode o administrador público devassar a vida do servidor público sob o pálido argumento de tentar encontrar indícios de uma pseudo infração disciplinar. Por ser o tema de grande relevância, resolvemos adentrá-lo no intuito de fixar os limites do poder público, que como todos sabem, possui competência discricionária para a instauração dos procedimentos administrativos que achar necessário para o atingimento de um determinado fim, do interesse da sociedade. Sucede, que a atuação conforme a lei e o direito, retira do Estado a ampla, geral e irrestrita discricionariedade, devendo a Administração Pública obedecer ao princípio da segurança jurídica, só instaurando o processo disciplinar quando estiver presente com toda certeza e materialidade, uma justa causa para a sua instauração, sob pena de indevida invasão da privacidade do agente público.

O processo administrativo disciplinar deverá ser instaurado sempre que a autoridade pública tiver ciência de qualquer irregularidade funcional perpetrada por agente público. Mas essa ciência deverá vir composta por elementos que comprovam falta aos deveres da função, e não uma acusação genérica. Nessas condições, somente o exercício irregular das atividades funcionais do servidor público, que desencadeie em descumprimento a deveres ou inobservância a proibições, devidamente comprovados ou que existam forte indícios dessas infrações é que deverão ser apurados: “O uso do poder disciplinar não é arbitrário: não o faz a autoridade quando lhe aprouver, nem como preferir.”

José Armando da Costa enfatiza que, sem o fumus boni iuris não há como se instaurar procedimentos disciplinares:

A garantia do devido processo legal não só assegura ao funcionário a feitura do procedimento disciplinar previsto na lei (sindicância e processo ordinário sumário), como exige, por via de conseqüência, a existência de elementos prévios que legitimem tal iniciativa. Não fosse a exigência desse pré-requisito, os procedimentos disciplinares - estribando-se em meros caprichos do administrador e podendo ser instaurados sem mais nem menos, isto é, sem a existência de indícios ou outros adminículos legais idôneos – a vida funcional do servidor público seria um constante transtorno recheado por uma insegurança jurídica. Daí porque o aspecto mais democrático e importante do devido processo legal é a exigência desse imprescindível requisito de iniciação processual (fumus boni iuris), sem o qual ficaria o servidor público à mercê das trepidações emocionais dos seus superiores hierárquicos, os quais poderiam, assim, infelicitar, importunar e desassossegar os seus subalternos como bem lhe aprouvesse, já que não estariam vinculados a esse pressuposto legal.”

 

No curso dos anos toma-se ciência de alguns inquéritos administrativos genéricos, instaurados sem elementos de apoio, para a posteriori ser feita uma devassa na vida do servidor público, com o objetivo de apená-lo, mesmo que inexistentes indícios de irregularidades. Além de discriminatório, esse tipo de conduta merece o devido repúdio por parte do direito administrativo, que não admite desvios ou excesso de poder por parte da Administração Pública.

Adilson Abreu Dallari, não concorda com essa conduta e afirma que:

Não é possível instaurar-se um processo administrativo disciplinar genérico para que, no seu curso se apure se, eventualmente, alguém cometeu falta funcional. Não é dado à Administração Pública nem ao Ministério Público, simplesmente molestar gratuitamente e imotivadamente qualquer cidadão por alguma suposta eventual infração da qual ele, talvez, tenha participado. Vale também aqui o princípio da proporcionalidade inerente ao poder de polícia, segundo o qual só é legítimo o constrangimento absolutamente necessário, e na medida do necessário.”

O autor salienta ainda que:

Repugna a consciência jurídica aceitar que alguém possa ser constrangido a figurar como réu numa ação civil pública perfeitamente evitável. Configura abuso de poder a propositura de ação civil temerária, desproporcional, não precedida de cuidados mínimos quanto à sua viabilidade.”

 

CONCLUSÃO

Assim, deverá haver um mínimo de prova do cometimento de transgressão disciplinar por parte do servidor público. Não basta apenas existir um fato ou uma suspeita, pois se torna necessário o fumus boni iuris para o início do procedimento disciplinar contra quem quer que seja. Esse juízo de valor, mesmo que em sumaria cognito o Administrador Público é obrigado a fazer, sob pena de cometer excesso de poder. Por isso é que, na dúvida, a prudência manda se apurar o fato tido como suspeito através da sindicância, onde não existe a figura do acusado, e o poder público pode, através de um procedimento sumário, onde é conferido o direito de defesa para o sindicado, promover a devida verificação da existência de indícios para a propositura do processo disciplinar.

Como exemplo, podemos citar o que vem acontecendo nos órgãos em que existe a fiscalização externa do contribuinte, onde os Auditores Fiscais ficam incumbidos de levantar (conferir) documentos que desencadeiam valores pagos indevidamente pelas empresas. Ora, a função do Auditor diligente é a de conferir livros contábeis, sem se imiscuir ou invadir o terreno dos cálculos, tarefa da alçada do pessoal lotado na arrecadação. Assim, diante de equívoco ou erro nos cálculos, a Administração não poderá identificar o Auditor Fiscal diligente, responsável apenas pela conferência dos livros contábeis, como um dos culpados por qualquer equívoco nos cálculos de restituição. Ora, o Auditor, chamado de diligente, é responsável pela conferência apenas dos recolhimentos, verificando os DARFs e a escrituração contábil da empresa sindicada. Só e mais nada.

Assim, o procedimento disciplinar que apura falhas nos cálculos da empresa fiscalizada, não poderá incluir o auditor em seu pólo, pois ele só era responsável regimentalmente pela conferência dos livros fiscais e DARFs e demais elementos, oferecendo um posicionamento opinativo, sem decidir ou fazer um juízo de valor sobre a legalidade ou não da restituição administrativa pleiteada pelo contribuinte. Assim sendo, a abertura de procedimento disciplinar contra o respectivo Auditor Fiscal fere a legalidade, pois nem em tese, o respectivo Auditor Fiscal seria tido como responsável pelas irregularidades da restituição. Ele só poderia figurar como indiciado se houvesse adulteração nos livros contábeis capaz de induzir os setores competentes ao erro. Esse é um típico caso de abuso de poder por parte da Administração Pública.

Esses casos de excesso de apuração por parte do Poder Público é uma constante, pois vem temperado pelo arbítrio, onde o tempo e futuras despesas gastas com diárias para a Comissão de Inquérito rompem a barreira da eficiência e da moralidade que devem estar presentes em todos os atos públicos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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SUNFELD, Carlos Ari e outros, Ass leis do processo administrativo, São Paulo, Malheiros, 2000, pág. 33-34.

 


1 Delegado de Polícia do Estado do Paraná

2 BRASIL. Lei Complementar n°14, de 26 de maio de 1982. Institui o Estatuto da Polícia Civil do Paraná.

3 BRASIL. Lei Ordinária Federal n°8112, de 11 de dezembro de 1990. Institui o regime jurídico dos servidores civis da União, autarquias e fundações públicas federais.

4 BRASIL. Lei n°10.406 de 10406. Institui o novo Código Civil.5ªed.atual.São Paulo: RT, 2003.

5 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 1998, p.567

6 CAETANO, Marcello, Do Poder Disciplinar, Lisboa, p. 25.

7 Ver, a propósito a Lei Federal 8.112/90 (Regime Jurídico Único) no artigo 128: "Na aplicação das penalidades serão consideradas a natureza e a gravidade da infração cometida, os danos que dela provierem para o serviço público, as circunstâncias agravantes ou atenuantes e os antecedentes funcionais".

8 Quanto à orbita estadual pernambucana vigora a pena disciplinar de repreensão no lugar da advertência presente no estatuto federal (artigo 199 da Lei Estadual 6123/68)

9 Artigo 146 da Lei Federal 8.112/90 (Regime Jurídico Único).

10 CAMPOS, Francisco, Direito Administrativo, 1960, Vol. II, pág. 356

11 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella, Direito Administrativo, Ed. 1999, pág. 400-402.

12 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro (n. 05), p. 618.

13 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Princípio do contraditório na sindicância, 2000.

14 MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. São Paulo: Atlas, 2001, pp. 117/118.

15 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Discricionariedade e controle jurisdicional. São Paulo: Malheiros, 2003, p.88

16 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal,1988.

17 STF, Ac. Unânime Sessão Plenária DJ 25/05/90 – ADCOAS n° 9.365.

18 Pareceres da Advocacia Geral da União - AGU GQ-12, de 07/02/94, item 16 - DOU de 08/02/94 e GQ-35, de 30/10/94, item 15 e 22, letra "e" - DOU de 16/11/94.

19 COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. Brasília: Brasília Jurídica, 1999, p. 127.

20 NÓBREGA, Airton Rocha. Excesso de prazo no processo disciplinar, 2001.