O PRESO NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA: SEUS REFLEXOS E PROSPECTO

Renato Wasthner de Lima 1

 

RESUMO: O texto trata sobre a Lei de Execução Penal e a realidade das Delegacias de Polícia, alertando para o desvio de função dos policiais civis. Analisa as relações entre o Judiciário e o DEPEN. Enfoca também a omissão do Ministério Público e órgãos de Direitos Humanos, destacando as recentes ações do Governo Estadual

PALAVRAS-CHAVE: Lei de Execução Penal; presos; função policial; presídios; omissão dos órgãos públicos.

 

1. INTRODUÇÃO

   Objetiva o presente uma análise rápida e apertada sobre a presença dos presos, condenados e provisórios, nos setores de carceragem da Polícia Civil. As bases do trabalho têm como parâmetro a realidade nas Delegacias de Polícia do Estado do Paraná.

Far-se-á uma análise dos padrões que a legislação federal pertinente pretendeu fosse implantado, para após ingressar na problemática do encarceramento de presos junto às Delegacias de Polícia. Como decorrência do tema, também se exporá o problema do desvio de função a que são submetidos os policiais civis nas custódias dos mencionados presos.

O reflexo que se propõe também perpassa pelo Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos de Direitos Humanos, vez também tem sua parcela de contribuição na questão.

Por fim se trará algumas ações governamentais no sentido de tentar minimizar o caos que se instalou nas Delegacias de Polícia e apresentar-se-á a conclusão.

Evidentemente que o tema não se esgota neste singelo artigo, mas é o suficiente para se iniciar uma discussão sobre os fatos que se apresentarão, há muito relegado a último plano.

 

2. LEI DE EXECUÇÃO PENAL

O diploma legal que cuida execução penal no Brasil é a Lei n. 7.210/84, que foi editada juntamente com a Lei n. 7.209/84, que trouxe a reforma do Código Penal de 1940, a fim de, ambas, orientar, modernamente, os fins a que se deve destinar a execução de pena imposta pelo Estado no exercício do jus puniendi.

Ao Estado cabe o direito de punir, o que o faz mediante um devido processo legal e uma ampla defesa. Após tal fase de persecução em juízo, cumpre-lhe executar a pena imposta de modo a punir, mas principalmente, ressocializar o apenado, reeducar-lhe para o convívio social.

Mirabete, em sua Execução Penal, Comentários à Lei n. 7.210/84, traz a lume o escopo desta legislação, lecionando que:

[...]. 5. O objeto do Direito Penitenciário (ou Direito da Execução Penal), diante de algumas flagrantes contradições entre a cominação e aplicação da pena e a sua execução, dirigiu-se ao estudo do desenvolvimento de meios e métodos para a execução da pena como defesa social e ressocialização do condenado. 6. A Lei de Execução Penal adotou os postulados da Nova Defesa Social, aliando a esta prevenção criminal e a humanização da execução da pena e afastando o ‘tratamento’ reformador, na esteira das mais recentes legislações a respeito da matéria.(1984, p.34)

Buscando tal objetivo é que a Lei de Execução Penal traz diversos institutos jurídicos de execução de pena criminal, procurando dar ao reeducando condições de reinserir-se na sociedade de forma gradual. Por isso traz a lei a presença dos institutos da progressão do regime, da liberdade condicional, da saída temporária, da permissão de saída e outros relacionados a tal escopo.

Assim, porque o objetivo do Estado é reeducar o apenado e reinserir-lhe na sociedade, é que também o referido diploma legal, traz comandos de tratamento digno do preso, na sua condição peculiar de apenado e reeducando, tendo sido perfeitamente recepcionado pela Constituição Federal que trata não só da dignidade da pessoa humana como regra geral, mas também a do preso, vindo, ainda, de encontro com os tratados internacionais a respeito da matéria.

Neste ponto a Lei de Execução Penal prevê que o Estado dê aos reeducandos assistência material, de saúde, jurídica, educacional, social, religiosa e assistencial aos egressos; prevê que se dê condições de trabalho interno e externo; e regulamenta deveres, direitos e disciplinas.

Pois bem, tendo tais premissas em mente, foi que Lei de Execução Penal prescreveu os tipos de estabelecimentos penais a serem adotados pelo Estado, tendo como norte o regime de pena imposto ao reeducando.

Adotou a Penitenciária como local de execução de pena de reclusão em regime fechado. A Colônia Agrícola, Industrial ou similar, para o cumprimento de pena em regime semi-aberto. A Casa do Albergado para cumprimento de pena em regime aberto e da pena de limitação de fim de semana. A Cadeia Pública para recolhimento de presos provisórios. O Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico para cumprimento das medidas de segurança.

Como regras gerais, dispôs a lei que o preso provisório ficará separado dos demais; que o estabelecimento penal deve ter lotação compatível com a sua estrutura e finalidade; que, nas Penitenciárias, haverá celas individuais com dormitório, aparelho sanitário e lavatório, sendo observado fatores de salubridade (aeração, insolação e condicionamento térmico adequado à existência humana) com área mínima de 6 m2; que, nas Colônias, o alojamento coletivo também observe tais fatores de salubridade e que seja feita a seleção de presos e se observe a capacidade de lotação a fim de se atender os objetivos da pena; que as Casas do Albergado sejam dotadas de aposentos de acomodação e nele se realizem atividades voltadas a reinserção social; e que os presos provisórios terão os mesmos direitos dos condenados, logo, tais regras também devem ser observadas nas Cadeias Públicas.

Como destaque, tem-se a previsão de que em cada comarca deve haver uma Cadeia Pública.

Em termos gerais, estas são as previsões legais que cumpre ao Estado implantar.

Não obstante, o que se tem observado é o completo e sistemático descumprimento da Lei de Execução Penal, fato que dispensa qualquer citação de fonte de pesquisa dada a notoriedade da situação que se instalou.

Hodiernamente, o Estado conta com uma população carcerária extremamente superior ao número de vagas existentes no sistema penitenciário nacional, proporcionando a superlotação dos ergástulos com a conseqüente inobservância das normas de execução penal retro mencionadas. São mais de 300.000 presos cumprindo pena e o sistema conta com um déficit de quase 130.000 vagas, conforme noticiado na Folha de São Paulo em 10.07.2004.

Celas individualizadas é questão praticamente risível, é letra morta da lei. Inexiste qualquer preocupação com os fatores de salubridade dos presos. Não se faz a devida separação entre presos provisórios e condenados, entre presos de alta, média e baixa periculosidade. Não há programas de reeducação do preso. Não são respeitados os regimes impostos na sentença. Benesses da lei deixam de ser aplicadas.

A falta de separação dos presos provisórios e condenados e sua separação e classificação por espécies de delitos cometidos, causa um encontro nocivo que redunda em uma escola do crime dentro dos próprios estabelecimentos penais. Ao invés de se reeducar, potencializa-se o caráter criminoso do indivíduo.

Os regimes de cumprimento de penas não são observados porque o Estado não tem estrutura prisional para atender aos regimes previstos na lei (Penitenciárias, Colônias Penais, Casas do Albergado e, principalmente, Cadeias Públicas), fazendo com que se cumpra em regime fechado o que deveria ser cumprido em regime semi-aberto (pois se não há vagas neste regime o Judiciário determina que se aguarde a vaga em regime fechado, fato que por não raras vezes impõe ao reeducando o cumprimento total de sua pena em regime diverso do previsto na sentença) e que se cumpra o regime aberto inteiramente solto (pois inexistem Casas de Albergado para tanto, exigindo-se do condenado que apenas compareça ao prédio do Fórum para uma assinatura de presença, sendo que também não há qualquer vigilância externa do apenado no cumprimento das demais condições do regime imposto na sentença).

Mas isto tudo tem porte pequeno perto do que ocorre junto as Delegacias de Polícia, que tiveram seus setores de carceragem indevidamente transformadas em Cadeias Públicas, considerando que estas inexistem legalmente.

Nelas se cumprem penas de todos os regimes, estão presos provisórios e condenados, são totalmente desprovidas de fatores de salubridade, são vigiadas por servidores em desvio de função evidentemente despreparados para a tarefa e etc. Tal assunto, entretanto, será adiante especificamente abordado.

Enfim, a proposta da Lei de Execução Penal é nobre, visa reeducar aquele que delinqüiu e previu programas a serem cumprido pelo Estado, porém a realidade instalada é completamente inversa, como quase que se inexistisse tal legislação, sendo totalmente violentada pelo próprio Estado que a editou.

Para rematar, trazemos a nota de rodapé da obra antes mencionada (1984, p. 34):

Há uma convicção quase unânime entre os que militam no exercício da aplicação do direito de que a Lei de Execução Penal é inexeqüível em muitos de seus dispositivos e que, por falta de estrutura adequada, pouca coisa será alterada na prática quanto ao cumprimento das penas privativas de liberdade e na aplicação a lei com relação às medidas alternativas previstas na nova legislação. Embora se reconheça que os mandamentos da LEP sejam louváveis e acompanhem o desenvolvimento dos estudos a respeito da matéria, estão eles distanciados e separados por um grande abismo da realidade nacional, o que a transformará, em muitos aspectos, em letra morta pelo descumprimento e total desconsideração dos governantes quando não pela ausência dos recursos materiais e humanos necessários à usa efetiva implantação. (...).

 

3. A REALIDADE NAS DELEGACIAS DE POLÍCIA

Nas Delegacias de Polícia impera a ilegalidade.

A Lei de Execução Penal não chega ser aplicada minimamente, nem se pode exigir que o seja diante de um ergástulo que paira na ausência de regulamentação legislativa, que não tem natureza jurídica, que é algo esquecido pelas autoridades, enfim, que é completamente ilegal.

Os setores de carceragem da Polícia Civil não servem para execução de pena, provisória ou definitiva, simplesmente porque não são estabelecimentos penais destinados a tanto. Não são Cadeias Públicas nem Penitenciárias. Não possuem regulamentação legal. São um nada jurídico. São ilegais.

A Lei de Execução Penal não prevê, em nenhum momento, que junto às Delegacias de Policia funcione a Cadeia Pública. Ao contrário, quis a lei que fosse estruturado um estabelecimento penal para presos provisórios nos moldes nela prevista, ou seja, dotada de fatores de salubridade, espaço físico adequado, separação de presos por categorias e, principalmente, dirigida por servidores públicos especificamente capacitados, como deveria ser nos demais estabelecimentos penais ali elencados.

Nas Delegacias de Polícia os setores de carceragem deveriam existir unicamente para a detenção extremamente provisória do preso pelo tempo necessário à lavratura do auto de flagrante delito ou cumprimento do mando de prisão e posterior encaminhamento ao estabelecimento penal adequado, ou seja, se deve pensar em uma detenção de, apenas, algumas horas.

Tal, porém, não ocorre. Nas Delegacias de Polícia encontram-se um amontoado de presos aguardando sentença ou com condenação transitada em julgado, ou seja, cumprido pena, e que estão sob os cuidados de policiais civis que atuam em desvio de função. Eclodem, por óbvio, conseqüências.

A superlotação atingiu níveis estratosféricos, lançando os presos a toda sorte de insalubridades causadoras de doenças. A média nas Delegacias do Estado do Paraná é de três a quatro vezes presos a mais do que a capacidade dos ergástulos. Tal grandeza dispensa comentários quanto ao nível de higiene e de acomodação.

A alimentação destes presos é feita com R$ 2,00 (dois reais) diários por preso (e até recentemente, ano de 2004, era de R$ 0,80 (oitenta centavos) por preso), com o que se compra a alimentação possível lançando-as para dentro das celas a fim de serem preparadas pelos próprios presos ou preparadas por “presos de confiança” intra muros. Em muito locais necessita-se da ajuda externa (prefeituras, associações, etc) para superar a falta de verba para alimentação.

Tenta-se oferecer aos presos banho de sol semanais juntos aos solários, que ficam vigiados por um policial civil, ou militar, ou ainda, por “presos de confiança”. Não há contingente de servidores policiais para tal serviço.

A visitação de familiares é semanal, dentro da carceragem ou no solário, com pais, mães, filhos, esposas, etc., sendo que na mesma oportunidade é que são feitas as visitas íntimas. A vigilância disto também se faz com o referido contingente de policiais, bem como a revista nos familiares.

A superlotação também proporciona a ocorrência de rebeliões, nas quais comumente restam presos lesionados (por eles próprios ou pela polícia) e até mesmo mortes. Igualmente, facilita a ocorrência de fugas.

Dotti (2001), tratou do tema com a seguinte exposição:

As delegacias de Polícia se transformaram em depósitos infectos de presos provisórios e de réus condenados. Nos últimos tempos essas pocilgas abrigam, com regularidade impressionante, seres humanos que não foram julgados, submetendo-se à vala comum inocentes e culpados, primários e reincidentes. Essas sucursais do inferno se transformaram, não raro, em centros de invasão para o resgate de presos perigosos. Contrariando a sua finalidade que consiste em abrir espaço para a prática dos atos de cartório ou secretaria das investigações e da conservação efêmera do preso provisório ou capturado até sua transferência, muitas delegacias de polícia se converteram em agências de insegurança pública.

Outra conseqüência nefasta é o contato do policial com o preso. A convivência diária provoca um diálogo indesejado pela instituição. Por vezes isto resulta na Síndrome de Estocolmo, em que o policial desenvolve certa relação de afeto e amizade pelo preso e, por isso, acaba por lhe proporcionar regalias indevidas. Também ocorre, com facilidade, um comércio de utilidades aos presos, como a venda de bebidas, objetos pessoais, cigarros, custódia em cela separada e etc, tudo a alto preço. De outro lado, tal contato também é responsável por abusos de autoridades de várias espécies, como a sevícia ao preso.

Assim, seja se compadecendo-se com o preso ou praticando faltas funcionais ou até delituosas, o contato do policial com o preso traz maléficos efeitos.

Percebe-se, destarte, que o rol de ilegalidade é imenso e não se esgota nisto, pois, observa-se que a questão perpassa também pelos foros da improbidade administrativa, vez que há uma malversação da verba pública aplicada na alimentação de presos, manutenção dos ergástulos, escoltas, colocação de policiais laborando em desvio de função etc.

O numerário dispensado para tanto não deveria sair da parcela do orçamento da Secretaria de Segurança Pública, mas da Secretaria de Justiça, pois, o que hoje está a encargo da Polícia Civil deveria estar a encargo do Departamento Penitenciário, órgão responsável por estabelecimentos prisionais.

O DEPEN é que deveria contar estrutura suficiente de Penitenciárias, Colônias Agrícolas, Casas do Albergado e Cadeias Públicas, bem como de servidores públicos capacitados para o exercício do serviço penitenciário, retirando da esfera da Polícia Civil a ilegal custódia de presos que hoje é promovida a altos custos materiais e humanos.

Para finalizar, e demonstrar que o descaso com a questão supera décadas, trazemos a baila trecho do artigo escrito pelo Delegado de Polícia, Dr. Artigas (1991, p.117) retrata uma realidade:

E o que dizer da situação das cadeias do Paraná? O número de presos à disposição da Justiça vem elevando nos xadrezes das Delegacias, sem que se tome qualquer providência para realocá-los. E não existe um relatório oficial e público sobre o assunto a não ser ofícios da Secretaria de Segurança reclamando soluções. Esse problema tem sido debatido e às vezes denunciado, porém coma pouca profundidade, em razão das mais diversas dificuldades. Ora a justificativa recai sobre a falta de verbas ora sobre a falta de locais adequados e suas poucas vagas, entretanto os problemas, para as delegacias, se avolumam em cascata e para os quais a estrutura da polícia civil é deficiente: nem viaturas, nem cadeias novas, nem elementos treinados para a ‘nova atividade’: a de agentes penitenciários....

 

4. O DESVIO DE FUNÇÃO DOS POLICIAIS CIVIS

Outra conseqüência da custódia ilegal de presos nas Delegacias de Polícia é o desvio de função dos policiais civis incumbidos desta tarefa, mas que merece destaque tópico próprio.

Os quadros da Polícia Civil do Estado do Paraná não contam com o cargo de agente penitenciário e nem está entre as funções, e respectivo treinamento dos policiais civis, a custódia de presos já indevidamente encarcerados nas Delegacias de Polícia.

Quem conta com tal pessoal é o DEPEN, vinculado a Secretaria de Justiça, sendo o órgão que deveria estar atribuído de tal tarefa em relação a totalidades dos presos do Estado do Paraná, conforme os motivos legais já retro mencionados.

Diante da constatação da inexistência da função de custódia de presos entre as atribuições da Polícia Civil, fica fácil constatar que os policiais civis que são destacados para exercer tal tarefa encontram-se em flagrante desvio de função. Falta-lhes a competência legal para exercer esta atribuição.

Não obstante o Estado cala-se diante da situação, se omite ao invés de agir. Pior, insiste no desvio de função.

Já não fosse nefasto o contato de policiais com presos, o despreparo do policial nessa função lhe acarreta, constantemente, condutas que implicam em “faltas funcionais” e, por vezes, condutas que invadem a seara criminal. Como exemplo, não rara vezes a fuga de presos é atribuída ao policial que ali estava em desvio de função, atribuindo-se-lhe um “trabalhar mal” ou uma outra “falta funcional” de “sei lá o quê”.

Absurdo se cogitar de falta funcional para quem não tem, legalmente, tal função. Aliás não se lhe pode dar tal função, porque, simplesmente, ilegal. Se dê a conduta o nome que queria, menos de falta funcional, pois, lhe falta fundamento jurídico.

Mesmo ciente disto, os órgãos da Policia Civil responsáveis pela apuração e aplicação de penalidades administrativas aos policiais faltosos, não claudicam em instaurar procedimentos administrativos para averiguar “faltas funcionais” de que ora se cogita.

O policial é submetido a um processo administrativo que, de imediato, lhe é anotado em sua ficha funcional, depois vê-se obrigado a custear uma defesa por um advogado, em evidente prejuízo de seu sustento e da família porque seus vencimentos são notoriamente parcos, e, por fim, fica a mercê do entendimento de um Conselho cujo veredicto é sempre imprevisível.

Não se argumente que é obrigação do Estado apurar, porque deve-se então apurar quem é o responsável pela ilegal atribuição do desvio de função ao policial. Não se argumente que o Estado deve providenciar defesa técnica àquele que não tem condições de constituir uma, porque não se pode esperar que tenha o policial a tranqüilidade de largar sua possível exclusão dos quadros nas mão de profissional que não está sendo devidamente remunerado para tamanha defesa. E, igualmente, não se argumente com a seriedade do veredicto final se, a rigor, não deveria nem ter sido instaurado um processo administrativo.

Argumentar em defesa do desvio de função e dos absurdos processos administrativos que por vezes decorrem desta situação, é, para dizer o mínimo e não ser hostil, uma falácia.

Mais recentemente temos a, também ilegal, contratação de agente penitenciários temporários para trabalharem na custódia de presos junto aos setores de carceragem das Delegacias de Polícia, que além de concretizar uma burla a determinação constitucional da contratação de servidores públicos mediante concurso público, jogam pessoas que não policiais nem agentes penitenciários, e cujo curso de formação penitenciária beira a insignificância, para promoverem a guarda de presos, sem que isso consiga retirar os policiais civis do desvio de função a que estão submetidos.

O desvio de função contribui, ainda, para aumentar a escassez de policiais nas suas funções precípuas de investigação, pois, a custódia de preso toma-lhes todo o tempo de serviço. São obrigados a escolta de presos, alimentação de presos, banho de sol dos presos, visitação dos familiares, retirada das celas para audiência com advogado, retirada das celas para cuidados com a saúde (médico e odontologista) e etc. Neste ponto anota-se que os quadros da Polícia Civil estão mais reduzidos do que a vinte ou trinta anos atrás.

Como se percebe, o ilegal desvio de função dos policiais ora retratado é responsável por um grande prejuízo no mister da Polícia Civil, refletindo diretamente na sociedade que depende deste serviço público.

 

5. JUDICIÁRIO VS. DEPEN E A OMISSÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO E ÓRGÃOS DE DIREITOS HUMANOS

Contribui para este contexto, a impotência do Poder Judiciário perante o Departamento Penitenciário.

Hoje, os juízes de direito lotados nas Varas e Execução Penal emitem, em relação aos presos com condenação definitiva, o respectivo mandado de implantação (MI), documento que deveria servir de ordem para implantação do preso no Sistema Penitenciário Estadual. Frise-se, ordem judicial, pois, trata-se de um mandado.

Ocorre que tal mandado é dirigido ao diretor do estabelecimento penal sob a cláusula “quando houver vaga”, ficando a critério exclusivo daquele estabelecer a existência de vaga. Ou seja, não trata-se de ordem, mas de pedido, pois, obviamente que havendo vaga impõe-se ao diretor do estabelecimento penal, por atribuição do ofício, implantar o preso no sistema. Para isto não se necessitaria de mandado, mas de simples comunicação de que existe pessoa com condenação definitiva pronta para ser ingressar em um dos ergástulos do Estado.

Declinam, com isto, os juízes, de parcela de sua jurisdição (que é indeclinável), uma vez que não dão ordem de implantação – ao passo que deveriam fazê-lo como etapa de execução de pena imposta no exercício do jus puniendi estatal – preferindo solicitar “os bons préstimos” do diretor do estabelecimento penal, este sim, senhor da implantação dos presos no Sistema Penitenciário Estadual.

Enquanto isso, presos cumprem pena definitiva nos setores de carceragem temporária das Delegacias de Polícia, sendo inimaginável que um Delegado de Polícia possa recusar a manter um preso nestes ergástulos superlotados. Já os diretores de estabelecimentos penais do Estado podem cumprir a “ordem” do juiz da execução penal no momento que entenderem possível, “quando houver vaga”.

Indaga-se: Por que o Poder Judiciário não tem coragem, ou não quer, fazer com que se cumpram suas próprias ordens? Por que se permite que se superlotem ao extremo as Delegacias de Polícia e não se determina uma maior contenção de presos nos demais estabelecimentos penais, os quais costumam funcionar com a capacidade somente um pouco além do normal? Digam os juízes!

Para agravar a situação, atualmente os juízes das Vara de Execuções Penais vem declinando de sua competência para os juízos do local da condenação onde os presos estão cumprindo sua pena definitiva, sendo que esta declinação conta com parecer sempre favorável do Ministério Publico e aval do Tribunal de Justiça. Parece que a intenção é institucionalizar de vez o ilegal cumprimento de pena em Delegacias de Polícia.

Neste oceano de ilegalidades também paira o Ministério Público e os grupos de Direitos Humanos.

Não se vê movimentação do Ministério Público, através de ações judiciais, para se impor ao Estado que corrija este quadro de aberração.

Igual caminho seguem os grupos de Direitos Humanos.

É notório ambos sempre se apresentam para achincalhar e querer punir exemplar e severamente aqueles que são obrigados a trabalhar diuturnamente em desvio de função na custódia de presos, porém jamais questionam a sobrecarga moral e de trabalho que policial carrega na custódia destes presos em ergástulos superlotados e juridicamente inexistentes.

Já é passada a hora de todos os setores da sociedade efetivamente se organizarem para por fim a tal crise.

 

6. RECENTES AÇÕES DO GOVERNO ESTADUAL

No corrente ano, diante da insustentável superlotação de presos na Delegacias de Polícia e visando alterar o quadro exposto, o Governo do Estado, conforme noticiado pelo jornal Gazeta do Povo, licitou a construção de 10 estabelecimentos penais, estando algumas já concluídas e outra em fase de construção. A medida criará a 6 mil novas vagas no sistema penitenciário.

Também, realizou a contratação de pessoal na Polícia Civil (delegados de polícia, investigadores de polícia e escrivães de polícia) e de soldados da Polícia Militar.

Houve também uma renovação do parque de viaturas de ambas as polícias e a compra de armamentos.

Entretanto, tais ações ainda são insuficientes diante da catástrofe que se instalou, mas já um sinal de enfrentamento do problema, que há muitos anos estava sem combate pelo Estado.

 

7. CONCLUSÕES

Observou-se que o Estado, de longa data, não consegue encontrar solução para o problema da sua população carcerária, pior, nunca se preocupou efetivamente em resolver a situação.

Deixou que as Delegacias de Polícia agonizassem com a custódia de presos para além do insustentável, gerando freqüentes as fugas de presos deste locais e ocasionando o desvio de função de grande o número de policiais civis mesmo diante enorme defasagem do quadro de servidores da Polícia Civil. A superlotação, além de tudo, submetem os presos a condições subumanas.

A solução está na adoção de uma política séria de segurança pública com a realização freqüente de concursos públicos e construção de estabelecimentos penais além dos que já estão em andamento. Tal também proporcionaria a retirada de muitos policiais civis do desvio de função.

Ainda, compete ao Judiciário e Ministério Público enfrentar, naquilo que lhes compete, a solução do problema, fazendo valer seus poderes institucionais para melhoria do problema, abandonando o estado de letargia em relação ao caso e cessando condutas que vão contra a solução ora esperada.

Enfim, a superlotação dos presos e sua presença nas Delegacias de Polícia não é de difícil solução, basta que os órgãos e poderes responsáveis invistam e trabalhem com seriedade.

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 1. ARTIGAS, Luís Fernando Viana. Nove Armas Para a Polícia. Curitiba: Artes & Textos, 1991.

 2. DOTTI, René Ariel, Doutrina, Instituto de Direito. Rio de Janeiro: Atlas, 2001.

3. MIRABETE, Julio Fabbrini. Execução Penal, Comentários à Lei n. 7.210/84. São Paulo: Atlas, 1997.

 4. NETO, Guilherme Degani, Governo planeja a construção de dez novos presídios. Curitiba: Gazeta do Povo, 2004.

 5. ORNAGHI, Tiago, Número de presos dobra em 8 anos no país. São Paulo: Folha de São Paulo, 2004.

 


1 Bacharel em Direito, Delegado da Polícia Civil do Estado do Paraná.