QUANDO O PROCESSO APLICA A PENA

Ana Cláudia Machado 1

 

RESUMO: O presente artigo procura demonstrar que, diante de uma realidade de corrupção e imoralidade praticadas por agentes públicos, fatos estes explorados constantemente pela mídia, a Administração Pública procura apresentar uma imediata resposta a sociedade e, para tanto, acaba sacrificando princípios e garantias constitucionais fundamentais. Neste trabalho, primeiramente será exposta a noção de Processo Administrativo Disciplinar, juntamente com seus componentes e evolução. Em seguida, haverá o elenco dos princípios que devem ser observados durante o processo disciplinar. Após, utilizando como exemplo o instituto do “afastamento temporário”, pretende-se demonstrar que muitos dos citados princípios não são respeitados em dispositivos do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná.

Palavras-chave: processo administrativo disciplinar; afastamento provisório

 

INTRODUÇÃO

“Todo mundo é inocente até que se prove o contrário!” Frase pertencente ao senso comum, repetida por quem muitas vezes não faz idéia do que seja o princípio constitucional da não-culpabilidade, tem sido ignorada em nome da reconstituição de uma boa imagem da Administração Pública, tão arranhada por “anões da previdência”, “mensalão” e “milhões de picaretas com anel de dotô”.

Por conta disso, princípios e normas constitucionais e infraconstitucionais, assim como o bom senso, têm sido sacrificados. O ilícito administrativo começou a ser explorado pela mídia e, em contrapartida, a Administração Pública passou a agir com extremo rigor contra o agente público suspeito, seja ou não ele culpado.

Cármen Lúcia Antunes Rocha demonstrou o sentimento de repúdio à prática de ilícitos por agentes públicos ao discorrer sobre o princípio da moralidade administrativa:

A ruptura ou afronta a este princípio, que transpareça em qualquer comportamento público, agride o sentimento de Justiça de um povo e coloca sob o brasão da desconfiança não apenas o ato praticado pelo agente, e que configure um comportamento imoral, mas a Administração Pública e o próprio Estado, que se vê questionado em sua própria justificativa (ROCHA, 1994, p. 208).

Ao invés da presunção de inocência, ao agente público aplica-se a presunção de culpabilidade e de ineficiência. Para ilustrar essa segunda pecha carregada pelo agente público, Zago (2005, p.58) utiliza a teoria X de McGregor, segundo a qual a maldade faz parte da natureza humana, assim como a indolência e o desinteresse pelo trabalho. Por conta disso, apenas o controle e a imposição de critérios de autoridade seriam capazes de fazer esse homem preguiçoso e desinteressado, produzir.

De forma alguma o presente artigo pretende pôr fim ao poder disciplinar, pregando a impunidade daqueles que pratiquem ilícitos administrativos. Sugere-se apenas a plena obediência aos princípios e normas constitucionais durante o processo administrativo disciplinar, bem como o exercício responsável do poder disciplinar. Dessa forma, evitar-se-iam distorções, como a do “afastamento temporário”, previsto no Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná (1982).

Nesse sentido, Freitas aconselhou (1997) aqueles que têm o poder de punir ao recomendar que ajam de forma ponderada, sem abusar do poder de coercitividade, além de nunca ultrapassar os limites da preservação da harmonia e da justiça inerentes a uma sociedade livre, evitando-se, por fim, “escorregar em subjetivismos contigentes”.

Balestreri (2004) também defende o exercício responsável e coerente do poder disciplinar ao dizer que “É preciso rigor e firmeza, sim. Mas isso jamais pode confundir-se com emocionalismo barato, amadorismo, truculência, psicopatia auto-justificada. Não se pode combater condutas destituídas de senso moral à partir da abdicação do senso moral”. E continua ensinando “A repressão à práticas socialmente lesivas precisa ser enérgica mas sem perda da identidade de valores do sistema democrático e de seus operadores”.

 

1. ESTATUTO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ:

O Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná (1982) abrange, dentre outros dispositivos, normatizações de Direito Administrativo Disciplinar material (substancial) e de Direito Administrativo Disciplinar formal (processual), sendo que ambos complementam-se mutuamente. Tal fenômeno verifica-se pela existência em citado estatuto de previsão genérica e abstrata de ilícitos administrativos e estabelecimento das sanções resultantes de sua não obediência, bem como de formas, condições e instrumentos utilizados pela Administração Pública em reação a ato praticado por agente público, no caso, pelo servidor policial civil.

Dentre as normas de Direito Administrativo Disciplinar formal ou processual, insere-se o processo administrativo disciplinar e o “afastamento temporário”.

1.1. Processo Administrativo Disciplinar

Etimologicamente, a palavra processo, que deriva do verbo procedere, abrange a idéia de ir para frente, de avançar, admitindo-se também o significado de “seqüência normativa de atos próprios com a finalidade de se atingir a verdade que está sendo procurada” (LUZ, 1992). Assim sendo, processo seria a seqüência de atos coordenados, objetivando uma decisão final para dirimir conflito de interesses, ou seja, seria forma de composição de litígios.

Para Antônio Bandeira de Mello (2004, p.527), processo (ou procedimento) administrativo “é uma sucessão itinerária e encadeada de atos administrativos tendendo todos a um resultado final e conclusivo”.

Processo Administrativo Disciplinar seria meio para se apurar e punir agentes públicos diante da ocorrência de faltas graves (MEIRELLES, 1991, p. 132).

Pode-se dizer, então, que o processo administrativo disciplinar envolve a ocorrência, em tese, de um ilícito administrativo, praticado por ação ou omissão de agente público, o que desencadeia a atuação da Administração Pública, personificada pelo exercício do poder disciplinar.

1.1.1. Ilícito

O ilícito tem sua origem em um ato, ou seja, uma conduta humana comissiva ou omissiva, capaz de provocar alteração na ordem jurídica. Verificando-se a ocorrência de um ilícito, deve-se apurar sua responsabilidade, considerando-se o dano causado e promovendo sua reparação, seja patrimonial ou outra espécie de sanção prevista em lei.

Já o ilícito administrativo, utilizando definição de Bacellar Filho (1998), seria entendido como “a ação ou a omissão que se posicione em desalinho com as regras legais, éticas e morais que comandam, em qualquer circunstância e independência do setor onde elas ocorram (público ou privado), as relações administrativas”.

Para Netto de Araújo (1994, p. 28):

O ilícito administrativo poderá: a) configurar também ilícito penal, como, p. ex., o abandono de cargo; b) configurar apenas ilícito administrativo puro, nada tendo de penal, dividindo-se sempre em ilícito administrativo disciplinar (como, p. ex., a desobediência a ordem legal de superior hierárquico) e ilícito administrativo não disciplinar (como, p. ex., o exercício de comércio dentro da repartição), que preferimos denominar funcional .

1.1.2. Agente público

Nos dizeres de Araújo (1994, p.45), agentes públicos são “todos aqueles que desempenham atividades que o Estado considera como a si pertinentes, com prerrogativas de Poder Público, seja em virtude de relação de trabalho, seja em razão de encargo ou contrato”. E acrescenta:

São eles, portanto, todos os que desempenham atividades administrativas no serviço público: os servidores (funcionários públicos, servidores celetistas contratados por autarquias ou fundações públicas, “ferroviários”, “precários”, extranumerários e outros regimes especiais ainda existentes), certos empregados públicos de entidades descentralizadas prestadoras de serviços públicos, e ainda certos agentes políticos, estes últimos embora submetidos (geralmente) a regimes especiais de responsabilidade.

1.1.3. Poder disciplinar

O poder disciplinar, que pertence à Administração Pública, seria exercido para apurar infrações, bem como para aplicar as correspondentes penalidades aos servidores públicos e demais pessoas sujeitas à disciplina administrativa.

O poder disciplinar fundamenta-se na supremacia do interesse público sobre o privado, não determinando situação de inferioridade do agente frente à Administração Pública, pois o indivíduo encontra-se protegido por garantias processuais e constitucionais.

O regime disciplinar foi instituído pelo Estado na tentativa de obrigar os agentes públicos à observância dos deveres funcionais, utilizando-se da fixação prévia de deveres e proibições, bem como da previsão de sanções ao desrespeito de cada uma deles.

Convém mencionar que citado poder não é ilimitado, devendo ser aplicado com responsabilidade e sob a égide de princípios e dispositivos constitucionais e legais. Como afirma Zago (2005, p. 59), para que seja garantida a ordem interna da repartição pública, as normas disciplinares devem ser aplicadas com retidão. Isso significa que as penas devem guardar correspondência, em qualidade e quantidades, à gravidade da falta cometida, utilizando-se regularidade, critério e eqüidade.

1.2. A Evolução Do Processo Administrativo

A partir de 1988, de mera garantia jurídica o processo administrativo foi elevado a garantia constitucional. Citada evolução depreende-se da análise do artigo 5.°, incisos LV e LIV, que inseriram o processo administrativo no rol dos direitos e garantias fundamentais. Assim, surge uma dupla garantia: geral e individual. Geral - pois regula o poder/dever do Estado de disciplina; individual - ao proteger o servidor público da ação estatal.

A importância de elevação à garantia constitucional não se restringe à rigidez conferida aos dispositivos constitucionais, mas à fixação de mínimas garantias processuais, à incidência de um sistema de controle de constitucionalidade e, sobretudo, à utilização de princípios constitucionais do processo.

Um exemplo da necessária adequação de práticas processuais após a redefinição de status legal para constitucional verifica-se no procedimento da verdade sabida: “quando o fato for de conhecimento notório aplica-se diretamente a pena, tendo em vista a desnecessidade do processo, porque a verdade resta conhecida” (BACELLAR FILHO, 1998, p. 79). Notória aqui, seria apenas a inconstitucionalidade desse dispositivo, pois não há exceção quando à exigência de processo (devido processo legal) para aplicação de sanção disciplinar, independente do conjunto probatório apresentado. Assim sendo, restaria ao instituto da verdade sabida apenas a abreviação do procedimento, por exemplo, eliminando-se a sindicância com caráter investigatório.

 

2. AFASTAMENTO TEMPORÁRIO

Após contextualização prévia, segue a análise de uma das medidas preventivas estabelecidas no Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, qual seja, o “afastamento temporário”, previsto no parágrafo 1.°, do artigo 216, do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná: “O Corregedor Geral da Polícia Civil decidirá fundamentadamente pelo afastamento temporário, ou não, do exercício do cargo ou das funções, com supressão das vantagens previstas nesta lei, do servidor policial civil processado criminalmente”.

Para alguns doutrinadores, a suspensão preventiva de agente público não teria qualquer vício, justificando-se na supremacia do interesse público sobre o privado e na natureza cautelar. “Tanto a prisão administrativa quanto a suspensão preventiva constituem medidas profiláticas para resguardo dos interesses do Estado, quer na objetividade decorrente da falta, quer no que tange à boa normalidade da instrução probatória” (LUZ, 1992, p. 93).

Ocorre que, citado instituto do “afastamento temporário” previsto no Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná, deve ser analisado de forma teleológica.

2.1. Princípios Aplicados No Processo Administrativo

A Administração Pública deve levar em consideração alguns princípios constitucionais ao exercer o poder disciplinar, tendo Bandeira de Mello (2004) apontado os princípios a seguir: a) Princípio da Audiência do Interessado; b) Princípio da Acessibilidade aos Elementos do Expediente; c) Princípio da Ampla Instrução Probatória; d) Princípio da Motivação; e) Princípio da Revisibilidade; f) Princípio da Representação e Assessoramento; g) Princípio da Lealdade e Boa-fé; h) Princípio da Verdade Material; i) Princípio da Oficialidade; j) Princípio da Gratuidade e k) Princípio do Informalismo.

Também devem ser observados os seguintes princípios: devido processo legal (art. 5.°, LIV), contraditório (art. 5.°, LV), ampla defesa (art. 5.°, LV), presunção de inocência (art. 5.°, LVII), juiz natural (art. 5.°, XXXVII e LIII), todos expressos na Constituição Federal (1988).

Dentre os mencionados princípios, destacam-se do Devido Processo Legal (contraditório e ampla defesa), da Motivação e o da Presunção de Inocência.

2.2. Princípio Da Presunção De Inocência

Assim como o Estado tem o poder/dever de apurar a existência de responsabilidade dos servidores públicos (direito de ação), o acusado tem direito de defesa, pois ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Referido direito de defesa processual existe não pela culpabilidade do acusado, ou seja, apenas como forma de garantir sua punição, mas para melhor buscar a verdade, esclarecendo os fatos. Até porque, o agente público acusado será considerado inocente até que tal presunção seja contrariada pelo fim do processo, obedecendo ao princípio constitucional da não-culpabilidade, que confere à Administração Pública o ônus substancial da prova.

A presunção de inocência indica que o servidor acusado não poderá ser considerado culpado até a decisão final da autoridade julgadora. Da acusação administrativa ou das decisões interlocutórias, no processo administrativo disciplinar, não podem advir conseqüências definitivas, compatíveis somente com decisões finais irrecorríveis (...) Em face deste princípio, as medidas coercitivas, porventura tomadas no curso do processo administrativo disciplinar, deverão ser consideradas “cautelares”: delas não poderão decorrer efeitos definitivos, decididas sempre de acordo com o princípio da necessidade (BACELLAR FILHO, 1998, p.271/272).

A supremacia do interesse público sobre o privado é um dos corolários básicos da Administração pública; mas, no processo administrativo, há restrições a citado princípio, conforme Ferraz e Dallari (2001, p.54), aplica-se “ao processo administrativo o princípio ‘na dúvida, pro-administrado’.”

2.3 Devido Processo Legal

Muito embora se admita que a Administração Pública detenha a autotutela do interesse público, o processo administrativo em sentido constitucional protege os administrados ao impedir gravames e sanções sem que haja o devido processo legal.

Durante muito tempo, o instituto do devido processo legal esteve presente apenas no âmbito do Direito Penal, mas acabou migrando para outros ramos do Direito, tornando-se obrigatório no Direito Administrativo Disciplinar.

Consiste na exigência de um processo formal e regular que anteceda a pretensão de tomar decisões gravosas contra alguém, que envolvam alterações na liberdade e/ou na propriedade de quem quer que seja, bem como na aplicação de sanção de qualquer natureza.

O devido processo legal administrativo garante não apenas o desenvolvimento da atividade disciplinar através de um “processo”, mas a efetividade para dispor de todas as técnicas processuais idôneas para validar um direito, acompanhado de provimento adequado ao pedido.

2.3.1. Ampla defesa

“Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (artigo 5.°, inciso LV, da Constituição Federal).

Sempre que houver processo contencioso, envolvendo situações de litígio ou exercício de poder sancionatório, aplica-se o princípio da ampla defesa. Este é assegurado ao agente público envolvido em processo administrativo disciplinar que tem direito de ser cientificado da tramitação do processo, conferindo-lhe vista dos autos, obtenção de xerocópias e conhecimento das decisões proferidas. O agente também poderá formular alegações, produzir provas pericial, documental e testemunhal antes da decisão final.

2.3.2. Contraditório

Em relação ao princípio constitucional do contraditório, afirma di Pietro (2001, p. 502) que o mesmo decorre naturalmente da bilateralidade do processo, ou seja, quando uma das partes alega algo, a parte contrária deve ser ouvida também, para garantir a oportunidade de resposta. O contraditório supõe o conhecimento dos atos processuais pelas partes e seus direitos de resposta ou de reação.

Para di Pietro (2001, p. 502) o citado princípio exige:

1. notificação dos atos processuais à parte interessada;
2. possibilidade de exame das provas constantes no processo;
3. direito de assistir à inquirição de testemunhas;
4. direito de apresentar defesa escrita.

2.4. Motivação dos Atos Processuais

Bandeira de Mello (2004, p. 462) conceitua Princípio da Motivação como sendo “O da obrigatoriedade de que sejam explicitados tanto o fundamento normativo quanto o fundamento fático da decisão, enunciando-se, sempre que necessário, as razões técnicas, lógicas e jurídicas que servem de calço ao ato conclusivo, de molde a poder-se avaliar sua procedência jurídica e racional perante o caso em concreto”.

A motivação deve ser prévia ou contemporânea, seu acesso possibilita a verificação da existência ou não dos motivos que fundamentaram o ato. O dever da Administração Pública de justificar seus atos não se limita à indicação de seus fundamentos de direito e de fato, havendo a obrigatoriedade de demonstrar a correlação lógica entre o evento, o resultado e a providência tomada. Assim sendo, a motivação deve ser tempestiva e suficiente, sob pena de tornar o ato ilegítimo.

A obrigatoriedade de motivação dos atos processuais objetiva impedir arbitrariedades por parte da Administração Pública, pois impõe ao agente disciplinador o dever de fundamentar seus atos, indicando os pressupostos legais e de fato considerados por ele no exercício da competência. Assim determina a Constituição Federal (1988), em seu artigo 93, inciso X: “...as decisões administrativas e dos tribunais serão motivadas, sendo as disciplinares tomadas pelo voto da maioria absoluta de seus membros”.

O Princípio da Motivação decorre do próprio Estado Democrático de Direito, independente de exigência legal expressa. Assim sendo, havendo a possibilidade de afetar direta ou indiretamente a esfera jurídica do cidadão, a motivação dos atos administrativos será obrigatória, sendo sua falta ou defeito grave capazes de gerar nulidade por vício de elemento essencial do ato.

Também Munhoz de Mello (2002, p. 49) diz ser indispensável a motivação dos atos administrativos, excetuando apenas os despachos de mero expediente no curso de processo administrativo, advertindo que a ausência de motivação invalida o ato administrativo.

Meirelles (1991, p. 113) foi categórico ao afirmar que “punição sem justificativa nos elementos do processo é nula, porque deixa de ser ato disciplinar legítimo para se converter em ato arbitrário, ilegal, portanto”.

A motivação deve estar presente não apenas nos atos decisórios e atos que aplicam penalidades, mas também nos atos que determinarem a instauração de procedimento disciplinar. Além disso, a motivação deve ser explícita, clara e congruente.

Para Ferraz e Dallari (2001, p. 58):

O princípio da motivação determina que a autoridade administrativa deve apresentar as razões que a levaram a tomar uma decisão. “Motivar” significa explicitar os elementos que ensejaram o convencimento da autoridade, indicando os fatos e os fundamentos jurídicos que foram considerados (...) Não basta que a autoridade invoque um determinado dispositivo legal como supedâneo de sua decisão; é essencial que aponte os fatos, as inferências feitas e os fundamentos de sua decisão, pois, conforme a conhecida lição de Giorgio Balladore Palieri, no Estado de Direito não existe apenas a exigência de que a autoridade administrativa se submeta à lei; é essencial que se submeta também à jurisdição.

Além de tornar efetivo o princípio da publicidade da Administração Pública, o Princípio da Motivação dos atos processuais garante o cumprimento de outros princípios constitucionais, como o da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência.

 

3. DECISÕES LEGÍTIMAS

Diante de todo o exposto, verifica-se que as decisões proferidas pela Administração Pública no exercício do poder disciplinar, para serem legítimas, devem respeitar princípios constitucionais explícitos e implícitos, o que não ocorre com o instituto do “afastamento temporário”.

Conforme a leitura do já citado parágrafo 1.°, do artigo 216, do Estatuto da Polícia Civil, para que o Corregedor Geral decida pelo afastamento temporário do servidor policial civil, basta apenas a existência de um processo criminal contra ele. Não se exige sentença judicial transitada em julgado e nem mesmo a instauração de processo administrativo disciplinar.

Ademais, o instituto do “afastamento provisório” prevê aplicação de pena sem processo, pois permite a supressão das vantagens do servidor bastando para isso apenas decisão fundamentada do Corregedor Geral da Polícia Civil; admitindo, em última análise, que seja imposta sanção patrimonial ao arrepio da lei. Não se pode dizer que citada fundamentação atenderia à exigência de motivação dos atos administrativos, deixando o agente público resguardado por garantia constitucional, pois a necessidade da medida também faz parte da motivação.

Facilmente se constata que o dispositivo do “afastamento provisório” é gota de mercúrio sobre manuscrito dos princípios e garantias constitucionais, pois nele não se adere e por ele não pode ser absorvido, destoando completamente de todo o contexto de direitos que levou anos para ser conquistado.

 

CONCLUSÃO

Não se pode assumir a postura de “Poliana” e afirmar que não são cometidos ilícitos na Instituição Policial Civil. A Polícia Civil é composta por membros da sociedade, que na condição de seres humanos não possuem a perfeição dos deuses e erram; erram muito, ao mesmo tempo em que apresentam excelentes qualidades. Assim, o servidor policial civil que praticar ilícito deve ser responsabilizado, mas apenas depois de findo o processo administrativo disciplinar obedecendo, integralmente, as garantias constitucionais.

Deve haver resposta Estatal diante da prática de ilícito administrativo, mas o julgamento antecipado do suspeito, apenas em resposta aos clamores públicos e da mídia precisa ser evitado. Cícero já dizia que força é cuidar para que a pena não seja maior do que a culpa e, se deve haver cuidado com a pena, atenção maior tem que ser dispensada ao processo que a antecede.

Não se pode jamais pretender aplicar o rigor legal esquecendo-se de seus próprios princípios e garantias. Quando isso ocorre, o poder disciplinar passa a mero joguete a serviço de interesses e vaidades de alguns. A população logo esquecerá da resposta estatal ou dirá que foi cumprida uma mera obrigação, já o inocente prejulgado, nunca ficará livre das cicatrizes emocionais produzidas pelo processo mal conduzido. Até porque, o clamor público é facilmente produzido pela mídia, que atualmente acusa, condena e executa a sentença do “bode expiatório” da vez. E, já que foi utilizado um termo bíblico, nunca é demais lembrar que foi a aclamação popular que acabou por libertar Barrabás e injustamente condenou Cristo à morte.

 

REFERÊNCIAS

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