A INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSTO NOS INCISOS I, II E III, DO ARTIGO 43 DO ESTATUTO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ, EM FACE DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

A INCONSTITUCIONALIDADE DO DISPOSTO NOS INCISOS I, II E III, DO ARTIGO 43 DO ESTATUTO DA POLÍCIA CIVIL DO ESTADO DO PARANÁ, EM FACE DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

Danilo Cesto 1

 

RESUMO: Neste trabalho, analisa-se a derrogação dos incisos I, II e III, do artigo 43, do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná2, que menciona as situações em que o servidor policial civil não poderá concorrer à promoção e acesso, sendo que esses três primeiros incisos do referido artigo, ferem a Constituição, por serem frontalmente contrários ao princípio da presunção da inocência (positivado no artigo 5º, LVII da CF)3, visto que impedem a promoção de policiais que ainda não têm contra si, sentenças condenatórias, podendo até mesmo, ao final do processo a que eventualmente respondam, serem absolvidos.

Palavras-chave: inconstitucionalidade, promoção, estatuto da polícia civil, princípio da presunção da inocência.

 

INTRODUÇÃO

A Carta Magna de 1988 renovou o sistema legal pátrio, opondo os direitos individuais como contraface ao autoritarismo estatal, trazendo importantes inovações no ordenamento que rege a Administração Pública e, devido à supremacia da Constituição, hierarquicamente superior às demais normas, as Leis do país devem ser interpretadas em conformidade com suas diretrizes, especialmente com os princípios basilares que possuem normatividade e eficácia absoluta e portanto, aplicação imediata, sob pena de perderem a eficácia caso os contrariem.

 

1. A QUESTÃO DAS PROMOÇÕES NA POLÍCIA CIVIL DO PARANÁ

Questão das mais importantes para o servidor policial civil é a da ascensão funcional por promoção. Todo policial busca incessantemente a realização profissional e fazer jus à sua remuneração mensal paga pelo Estado com o dinheiro dos impostos do contribuinte. É natural que o policial almeje o reconhecimento de sua dedicação pelos seus pares e superiores, representada pela promoção funcional.

Por este motivo, a administração policial deve tratar o assunto com a máxima seriedade e transparência possível, de forma a não deixar margem a dúvidas, que geram insatisfação na classe e desmotivação para o trabalho.

O policial civil trabalha diuturnamente, cumprindo sua escala de trabalho e seu dever funcional, esmera-se em cursos de aperfeiçoamento profissional e, não raras vezes arrisca a própria vida em embates com marginais; Cotidianamente lida com pessoas inescrupulosas que lotam as carceragens das delegacias, transformadas que foram em fétidos e inadequados presídios e, sem a estrutura ideal para bem desempenhar seu ofício, sem o devido amparo médico ou psicológico, sai armado às ruas para investigar crimes e prender bandidos. No calor dos acontecimentos pode eventualmente ter de usar do esforço físico necessário para conter injusta resistência ou agressão, ou pode tomar uma decisão movida pela urgência da situação, que acabe por gerar dúvidas quanto à sua legitimidade e legalidade, motivo pelo qual terá de responder a procedimento administrativo para apurar se sua ação foi ou não lícita.

A partir de então se inicia um verdadeiro calvário para o policial civil, agente do Estado, o qual, no entanto, não lhe dá guarida jurídica e nem psicológica ou financeira, para defender-se condignamente no processo administrativo que se inicia. O servidor policial tem então de custear às próprias expensas os honorários advocatícios, se não quiser ter dissabores ainda maiores no futuro. Dessa maneira já é penalizado, junto com toda sua família, que depende do seu salário para sobreviver.

Como injusta conseqüência do advento do processo administrativo disciplinar ou mesmo do processo penal a que o servidor policial civil responde, também está automaticamente excluído da listagem dos servidores aptos a promoções, mesmo aquelas devidas por antiguidade, como se todo o tempo em que trabalhou, prestando bons serviços à corporação, de nada valessem.

Além da falta de transparência e de critérios objetivos para realizar a promoção por merecimento dos servidores, o Departamento da Polícia Civil ainda conta com uma legislação vetusta, do tempo da ditadura militar e que criou vários empecilhos à promoção do servidor policial, que eventualmente esteja sendo investigado em sindicância, processo disciplinar ou criminal, não levando em consideração que ao final do processo o servidor poderá ser absolvido das acusações.

Diz o artigo 43, do Estatuto da Polícia Civil do Estado do Paraná2: “O servidor policial civil, observado o previsto no § 1º do artigo 216 desta lei, não poderá concorrer à promoção e acesso, quando:

I – estiver respondendo à sindicância ou processo disciplinar;
II – estiver respondendo a processo criminal, enquanto a sentença final não houver transitado em julgado;
III – for preso preventivamente ou em flagrante delito;

Com essa legislação autoritária perpetua-se a injustiça contra o policial civil paranaense, que tem os efeitos da condenação antecipados, sem poder concorrer à promoção, mesmo quando inocente, desde que esteja respondendo a processo disciplinar ou criminal.

 

2. A REDEMOCRATIZAÇÃO DO BRASIL E A NOVA CONSTITUIÇÃO FEDERAL

A redemocratização do Brasil, que teve como corolário a Constituição Federal, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte, em 1988, instituiu no país uma nova ordem constitucional, que busca alcançar um verdadeiro Estado Democrático de Direito, destinado a assegurar o livre exercício dos direitos sociais e individuais, tendo como fundamentos, entre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, II e III, da CF)3. O preâmbulo da Constituição anuncia o objetivo nacional de construção de uma sociedade democrática em que a liberdade e a justiça sejam valores supremos, fundados na harmonia social.

A Constituição Cidadã3 positivou, em cláusula pétrea, imutável por força do mandamento contido no artigo 60, § 4º, inciso IV, os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, cujo elenco registrado no seu artigo 5º não é exaustivo, conforme ressalva o seu inciso LXXVII, § 2º, onde se lê que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição3 não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.

Conforme conceitua José Cretella Júnior (in: Revista de Informação Legislativa, v. 97:7), citado por Maria Sylvia Zanella Di Pietro4: “Princípios de uma ciência são as proposições básicas, fundamentais, típicas que condicionam todas as estruturações subseqüentes. Princípios, neste sentido, são os alicerces da ciência”.

Pondera a insigne professora Lúcia Valle Figueiredo5, os princípios gerais de Direito serão vetores interpretativos, mormente quando não houver norma expressa para contrariá-los. Neste sentido, não há como desconsiderar, por primeiro, os princípios fundamentais do Estado brasileiro para a boa aplicação do Direito. Só assim será possível alcançar, na prática, um verdadeiro Estado Democrático de Direito, tanto mais quando muitos dos diplomas em vigor no Brasil são anteriores à Lei Magna de 19883, que reformulou muitos conceitos, estabeleceu institutos processuais democráticos, materializou outros tantos e introduziu uma verdadeira carta de direitos no seu artigo 5º. Com efeito, não se pode mais conceber um sistema legal que não tenha como norte a idéia de cidadania e de dignidade da pessoa humana.

 

3. A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS

Os princípios, agora constitucionalizados, demandam novos paradigmas e soluções. Os novos tempos são marcados pela ascensão dos valores, pelo reconhecimento da normatividade dos princípios e a essencialidade dos direitos humanos fundamentais. A mudança de paradigmas é potencializada pelo desiderato de uma realização sócio-material do Direito, com todos os seus princípios.

A nova hermenêutica constitucional é uma hermenêutica de princípios, portanto, o ponto de partida do intérprete hão de ser os princípios constitucionais. E por isso, desde 1988, exige-se também um novo direito administrativo, com a atualização e eliminação de modelos arcaicos, positivados há décadas, ou ao menos uma nova forma de aplicar a norma administrativa, adequando-a aos princípios norteadores do direito brasileiro, com mais atenção à pessoa humana e à efetiva harmonização social. Conforme Romeu F. Bacellar Filho6, devido à supremacia material e formal da Constituição sobre o direito ordinário, negar caráter normativo às regras e aos princípios constitucionais é o mesmo que negar a quase totalidade do texto constitucional.

Afirma o articulista Luís Alberto Barroso7, que atualmente admite-se que o Direito é um sistema aberto de valores e que os princípios constitucionais explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico, tendo status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras.

Os valores de justiça e de realização dos direitos fundamentais são encampados pela Constituição, que transforma-se em um sistema aberto de regras e princípios, aberta a valores jurídicos supra positivos. A moderna dogmática constitucional baseia-se na distinção qualitativa entre regra e princípio, como forma de superação do positivismo legalista, que considerava o princípio apenas como uma diretriz a ser seguida e não norma vinculante. Essa mudança de paradigma tem como um de seus precursores, o professor Ronald Dworkin da Universidade de Harvard, EUA, autor da obra Taking rights seriously, editada pela primeira vez em 1977, cuja sistematização acerca das funções das regras e princípios são acatados e fonte de consulta nesta área.

Luís Roberto Barroso8 assinala ainda que "a dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição".

Bastante elucidativa é a lição de Celso Antônio Bandeira de Mello9, fundamentado em Gordillo, que leciona: “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumácia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra”.

Sobre a inconstitucionalidade das leis, o Supremo Tribunal Federal, assim manifestou-se:

“A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. (...) A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária” (STF – Plenário – ADIn 2-1 – Rel. Paulo Brossard – j. 06/02/1992 – DJU 21/11/1997, p. 60.585)10.

3.1. A APLICAÇÃO IMEDIATA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

A aplicação imediata da principiologia democrática faz realizável a segurança jurídica, que é o princípio mantenedor do próprio Estado, sendo o da Justiça o princípio maior, conforme escreve Carmem Lúcia A. Rocha11 . A segurança jurídica pode ser considerada como a certeza do indivíduo na correta aplicação dos valores e princípios de Justiça absorvidos pelo sistema de direito adotado em determinada sociedade.

O preceito constitucional como toda norma jurídica, na acepção de Miguel Reale12, é um modelo operacional que articula fato e valor. A autoridade que elabora a norma assume uma atitude de quem relaciona fatos e valores, dando-lhe um sentido. Arremata Maria Helena Diniz13, asseverando que nenhuma norma pode contrariar o comando constitucional, sob pena de ser decretada sua inconstitucionalidade pelo Poder Judiciário. As normas constitucionais são supremas, a elas todas devem adequar-se.

Por tratar-se de norma-origem, ou seja, por não existir outra norma acima dela, a Constituição tem supremacia hierárquica sobre todo o ordenamento jurídico. A supremacia da Constituição se justifica para manter a estabilidade social, bem como a imutabilidade relativa de seus preceitos, daí haver uma entidade encarregada da “guarda da Constituição”, para preservar sua essência e os princípios jurídicos. O órgão jurisdicional tem por função primacial controlar a constitucionalidade das leis, verificando a correspondência do ato normativo diante do texto constitucional. Nas Constituições rígidas se pode verificar mais facilmente a superioridade da norma constitucional criada pelo constituinte, relativamente àquelas elaboradas pelos demais órgãos.

3.2. A EFICÁCIA E A INEFICÁCIA DAS NORMAS PERANTE A CONSTITUIÇÃO

O âmbito temporal de validade constitui o período durante o qual a norma tem vigência (sentido estrito). Vigência temporal é uma qualidade da norma atinente ao tempo de sua atuação, podendo ser invocada para produzir, concretamente seus diferentes efeitos (eficácia).

A eficácia vem a ser a qualidade do texto normativo vigente de produzir, ou irradiar, no seio da coletividade, efeitos jurídicos concretos, supondo, portanto, não só a questão de sua condição técnica de aplicação, observância, ou não, pelas pessoas a quem se dirige, mas também de sua adequação em face da realidade social, por ele disciplinada, e aos valores vigentes na sociedade, o que conduz ao seu sucesso. Terá eficácia jurídica a norma constitucional que tiver condições de aplicabilidade e de produzir seus próprios efeitos de direito.

Diante da supremacia da Constituição, que subordina toda a ordem jurídica aos seus preceitos, as leis e atos normativos, anteriores à nova carta, somente terão validade se forem compatíveis com a nova norma suprema. Qualquer contradição preexistente entre norma e preceito constitucional deve, dentro do sistema, ser apurada com rigor, pois é indubitável o imediato efeito ab-rogativo da Constituição Federal sobre todas as normas e atos normativos que com ela conflitarem, não sendo necessárias quaisquer cláusulas expressas de revogação.

Com a promulgação da Lei Maior, cria-se uma nova ordem jurídica, à qual devem ajustar-se todas as normas, sejam elas gerais ou individuais. A cessação da eficácia de normas anteriores incompatíveis com a Constituição é matéria pacífica, pouco importando a natureza desses preceitos, sejam outras normas constitucionais, sejam leis ordinárias, regulamentos, ou atos administrativos.

3.3. A SUPEREFICÁCIA DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

As normas constitucionais são doutrinariamente distinguidas quanto à sua eficácia, existindo um gradualismo na eficácia das mesmas, por não serem idênticas quanto à produção de seus efeitos e à sua intangibilidade ou emendabilidade.

Para o nosso trabalho, interessa especificamente as normas classificadas como de eficácia absoluta, que no dizer de Maria Helena Diniz14, tratam-se de normas supereficazes, por serem intangíveis; contra elas nem mesmo há o poder de emendar. Daí conterem uma força paralisante total de qualquer legislação que, explícita ou implicitamente, vier a contrariá-las. Distinguem-se, portanto, das normas constitucionais de eficácia plena, que apesar de incidirem imediatamente sem necessidade de legislação complementar posterior, são emendáveis. Por exemplo, os textos constitucionais3 que amparam a federação (art. 1º), o voto direto, secreto, universal e periódico (art. 14), a separação de poderes (art. 2º) e os direitos e garantias individuais (art. 5º, I a LXXVII), por serem insuscetíveis de emenda, são intangíveis, por força dos arts. 60, § 4º, e 34, VII, a e b.

Ensina a supra mencionada autora, que tais normas possuem eficácia positiva por terem incidência imediata e serem intangíveis por não poderem ser modificadas por processo normal de emenda. Têm também eficácia negativa por vedarem qualquer lei que lhes seja contrastante, daí sua força paralisante total e imediata. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são diretamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

Há uma supereficácia paralisante, ou ab-rogante, das normas constitucionais absolutas, pois, aplicáveis imediatamente, sendo intangíveis e invioláveis, não poderão ser alteradas pelo poder constituinte derivado, sobrevivendo enquanto a Constituição for vigente. São, portanto, inoperantes as leis que, porventura, as limitarem ou que com elas conflitarem.

As normas constitucionais contêm princípios e fins vinculantes para o Poder Público ou a todos os órgãos estatais. Tais finalidades e princípios preordenados, ainda que não estejam positivados em normas legais, administrativas ou judiciais, impedem que a legislação, a administração e a justiça emitam comandos que lhes sejam incompatíveis. Essas normas constitucionais, enunciadoras de princípios gerais e fins, para que sejam traduzidas em normas específicas, na disciplina de determinadas matérias, têm eficácia negativa, e não positiva. Como bem entendeu a autora do Curso de Direito Administrativo, “norma que contraria princípios gerais de Direito e garantias fundamentais, é inválida”.15

 

4. BREVE CONSIDERAÇÃO SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO ACESSO

Neste trabalho, deixa-se de discorrer sobre a derrogação do “acesso” funcional previsto no artigo 43 do EPC2, visto que a revogação desse tipo de investidura em cargo público adveio de outra norma constitucional (artigo 37, inciso II, da CF)3, que prescreve que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso publico de provas ou de provas e títulos, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração. É matéria diversa da que se propõe analisar neste artigo.

 

5. O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

No rol do artigo 5º da Constituição Federal3, encontramos garantias que também são referidas em cartas universais de direitos e em tratados internacionais, como o Pacto de São José da Costa Rica e o Pacto de Nova Iorque sobre Direitos Civis e Políticos, ambos integrados ao ordenamento jurídico brasileiro com força de leis ordinárias e, portanto normas vigentes.

Dentre esses direitos individuais fundamentais, destaca-se para efeito deste estudo, o chamado princípio da “presunção de inocência”, ou princípio da “não culpabilidade”, previsto no artigo 5º, inciso LVII, da CF3, que preceitua: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença condenatória”, Acolhido também nos tratados internacionais sobre direitos humanos, este princípio representou ao tempo de sua introdução nos sistemas jurídicos um enorme avanço.

Conforme expõe Mirabete16, já constava da Declaração Francesa de 1789 no art. 9º: “Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado (...)”, garantia que foi reiterada também no art. 8º, § 2º, do Pacto de São José da Costa Rica (introduzido no Brasil pelo Decreto Federal nº. 678/92) e no artigo 11 da Declaração Universal de Direitos, da ONU, em 1948 e ainda, no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (art. 14, § 2º, de 1966).

A aceitação deste princípio surgiu como conseqüência direta do anteriormente elaborado princípio do devido processo legal (due process of law) e tem fundamento na proibição do excesso, que em outras palavras significa a impossibilidade de antecipação dos efeitos da condenação antes do trânsito em julgado de sentença condenatória. O cumprimento da pena, a perda da primariedade, a execução civil da condenação, todos pressupõem o trânsito em julgado da decisão condenatória.

A instauração de um processo penal ou administrativo disciplinar contra alguém, pressupõe a suspeita de culpabilidade e de responsabilidade pelo fato imputado, colocando a inocência em incerteza até a sentença definitiva. Trata-se de uma afronta ao estado de inocência.

A instauração do processo para apuração da autoria, desde que estribada em indícios sérios e veementes, é absolutamente necessária, pois do contrário a excessiva e irrestrita observância do princípio inviabilizaria o poder estatal de tutelar a coletividade por meio dos institutos da ação penal, da prisão cautelar, ou outros atos coercitivos, proteção essa que também possui amparo constitucional. No entanto, há que se evitar os excessos do Administrador, para não tosar os direitos fundamentais da pessoa, além da medida exata de tal necessidade, sob pena de ferir o princípio da não culpabilidade e causar danos irreversíveis a inocentes. Somente o fato de a pessoa estar sendo processada, onde sua culpabilidade está sendo apurada, não justifica por si só, medidas de exceção. Tais medidas hão que se fundamentar em elementos objetivos e subjetivos, provados ou muito bem evidenciados, que indiquem a real necessidade dessas medidas, de modo a não tornar a exceção, numa odiosa regra.

5.1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA

Os princípios elencados no artigo 5º da Constituição3 regem todo o ordenamento jurídico e não apenas o processo penal, mesmo aqueles princípios que têm origem nesse ramo do direito, assim o princípio da presunção da inocência alastra suas diretrizes também para o ramo do direito administrativo e serve como diretriz aos procedimentos disciplinares e no relacionamento da Administração com os servidores e demais administrados, não sendo lícito à Administração Pública antecipar de qualquer forma, os efeitos de eventual penalidade que possa vir a ser imposta ao servidor que eventualmente responda procedimento ou processo disciplinar, antes da prolação da sentença final do devido processo administrativo.

Esclarece o Professor BACELLAR FILHO17, que a presunção de inocência indica que o servidor acusado não poderá ser considerado culpado até a decisão final da autoridade julgadora. Da acusação administrativa ou das decisões interlocutórias, no processo administrativo disciplinar, não podem advir conseqüências definitivas, compatíveis somente com decisões finais irrecorríveis. E prossegue, explicando que das medidas coercitivas tomadas no decorrer do processo, consideradas cautelares, não poderão decorrer efeitos definitivos.

A interpretação principiológica do sistema legal vigente, reforçada pela novel Constituição Federal, que positivou vários princípios gerais de direito, afasta a eficácia jurídica do disposto nos incisos I, II e III, do artigo 43, do Estatuto da Polícia Civil do Paraná2, por flagrante violação de vários dos princípios norteadores do direito brasileiro, tais como o da dignidade da pessoa humana, da cidadania, do devido processo legal, mas especialmente por ferir o princípio da presunção de inocência.

 

CONCLUSÃO

É inegável a normatividade dos princípios constitucionais e a supremacia da Constituição Federal sobre as demais leis existentes no país, e o Estatuto da Polícia Civil do Paraná não é exceção. Diante disso, à luz dos princípios consagrados na Constituição Federal, fica evidente a ilegalidade, por inconstitucional, do disposto nos incisos I, II e III, do artigo 43 do E. P. C.2, que diverge frontalmente do princípio elencado no inciso LVII, da C. F3.

Como salutar forma de resolver essa situação, pode e deve o administrador deixar de aplicar tais dispositivos inconstitucionais, sem receio de ferir o princípio da legalidade (estrita), o qual não deve ser interpretado de maneira mesquinha, equivocada, pois na realidade, o administrador, ao dar maior valor à norma constitucional em detrimento da norma inferior, certamente não estará violando princípio algum, pelo contrário, aí sim estará deixando de violar vários princípios de direito.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro. Artigo originalmente publicado no Rio de Janeiro: R. Dir. Adm., 1997, p. 191, encontrável em compêndio fornecido pela Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, sob o título: Novas tendências da processualidade administrativa no Estado democrático, Curitiba, 2005.

REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1982.

DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2001.

MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1991.

 


1 Bacharel em Direito, Delegado de Polícia do Estado do Paraná

2 PARANÁ. Lei complementar nº 14, de 26/05/1982. Institui o Estatuto da Policia Civil do Paraná. Curitiba: Assembléia Legislativa, 1982.

3 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.  

4 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2005, p. 66.

5 FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 41.

6 BACELAR FILHO, Romeu Felipe. Princípios constitucionais do processo administrativo disciplinar. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 145.

7 BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filosóficos do novo direito constitucional brasileiro. Artigo disponível na internet, no site: http//jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=32088&p=, acessado em 27/11/05.

8 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 147..

9 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Atos administrativos e direito dos administrados. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1981, p. 88.

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Plenário. ADIn 2-1, Rel. Paulo Brossard – j. 06/02/1992 – DJU 21/11/1997, p. 60.585.

11 ANTUNES ROCHA, Carmem Lúcia. Princípios constitucionais do processo administrativo no direito brasileiro. Artigo originalmente publicado no Rio de Janeiro: R. Dir. Adm., 1997, p. 191.

12 REALE, Miguel. Filosofia do direito. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 171.

13 DINIZ, Maria Helena. Norma constitucional e seus efeitos. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 14.

14 DINIZ, Maria Helena. Obra citada. p. 109.

15 FIGUEIREDO, Lúcia Valle, obra citada. p. 40.

16 MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo penal. São Paulo: Atlas, 1991, p. 42.

17 BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Obra citada, pp. 271 e 272.