CONTRADITÓRIO E IRREPETIBILIDADE DE PROVAS PRODUZIDAS NO INQUÉRITO POLICIAL

CONTRADITÓRIO E IRREPETIBILIDADE DE PROVAS PRODUZIDAS NO INQUÉRITO POLICIAL

SILVA, Vanessa Cristina de Lima e1

 

 

Resumo:

De acordo com o princípio do livre convencimento motivado do juiz, as decisões judiciais devem ser sempre fundamentadas e, no caso do processo penal, pautadas nas provas colhidas durante a persecução criminal, seja na fase judicial, caso em que, de acordo com o art. 155 do Código de Processo Penal, as provas deverãoconsiderando a urgência de sua produção e, inclusive, a possibilidade de sua colheita independentemente de autorização judicial, ou se a aplicação do contraditório deve ser obrigatória, como nas demais provas cautelares em sentido amplo. Considerando a própria natureza de procedimento administrativo inquisitorial do inquérito policial, demonstrar-se-á que, embora a regra seja a dispensabilidade do contradit ser colhidas mediante contraditório, seja na fase investigativa, situação em que o entendimento é cediço no sentido de a regra ser a dispensabilidade do contraditório. Exceção à dispensa da dialética ocorre no caso das provas cautelares e antecipadas colhidas no inquérito, devendo seguir a mesma regra das provas produzidas em juízo, pautando-se, portanto, no contraditório. O que o presente trabalho propõe discutir, com base primordialmente em revisão bibliográfica, é se, no caso das provas não repetíveis produzidas durante o inquérito, aplica-se a regra geral da dispensabilidade do contraditório, ório na fase investigativa, as provas não repetíveis, assim como as cautelares em sentido estrito e as antecipadas configuram exceção e, mesmo quando produzidas antes da instauração do processo, demandam obediência à dialética. Dessa forma e a partir do que foi discutido no trabalho, espera-se contribuir ao fomento da discussão quanto à relação entre o contraditório e o inquérito policial e, com isso, evidenciar a relevância dessa etapa da persecução penal, considerando, especialmente, a produção de provas que não poderão ser repetidas em juízo.

 

Palavras-Chave: inquérito policial; livre convencimento motivado; provas não repetíveis; contraditório; dispensabilidade.

 

 

 

CONTRANTRADICTORY AND IMPROPRIETY OF PROOF PRODUCED IN THE POLICE INVESTIGATION

Abstract:

According to the principle of free convincing of the judge, judicial decisions must always be justified and, in the case of criminal proceedings, based on the evidence collected during the criminal prosecution, or in the judicial phase, in which case, according to article 155 of the Code of Criminal Procedure, the evidence must be obtained by means of contradictory, either in the investigative phase, situation in which the understanding is fussy in the case of the precautionary and anticipated evidence collected in the investigation, and must follow the same rule of evidence produced in court, thus being based on the contradictory. What the present paper proposes to discuss, based primarily on a bibliographical review, is whether, in the case of the non-repeatable evidence produced during the investigation, the general rule of dispensability of the contradictory is applied, considering the urgency of its production and even the possibility of its harvest regardless of judicial authorization, or whether the application of the contradictory must be mandatory, as in other precautionary tests in a broad sense. Considering the very nature of the inquisitorial administrative procedure of the police investigation, it will be shown that, although the rule is the dispensability of the adversary in the investigative phase, non-repeatable evidence, as well as precautionary measures in the strict sense and those anticipated constitute an exception, even when produced before the initiation of the process, demand obedience to the dialectic. In this way and from what was discussed in the paper, it is hoped to contribute to foment the discussion about the relationship between the adversary and the police investigation and, with that, to highlight the relevance of this stage of criminal prosecution, especially considering the production of evidence that cannot be repeated in court.

 

Keywords: police investigation; free convincing of the judge; non-repeatable evidence; contradictory; dispensability.

 

Introdução:

 

O processo penal, por tratar da aplicação de sanções graves a possíveis autores de fatos definidos como crimes, e não fugindo da regra geral processual, tem como um dos seus princípios basilares o do livre convencimento motivado do juiz, segundo o qual o magistrado, quando do julgamento, tem liberdade no apreciar das provas, podendo formar seu convencimento conforme sua livre convicção, desde que motivada com base nas provas produzidas durante a persecução penal (PACELLI; FISCHER, 2017, p. 324).

Antes do advento da Lei nº 11.690/08, o princípio do livre convencimento motivado já era previsto no Código de Processo Penal. Todavia, a jurisprudência prevalecia no sentido de que o magistrado poderia formar seu convencimento com base tanto nas provas submetidas ao contraditório, como também, subsidiariamente, com base naqueles elementos informativos produzidos na fase de inquérito, ainda que sem contraditório.

A expectativa era de que com a alteração promovida na regra processual, o legislador definisse de forma expressa que o livre convencimento motivado do juiz, no processo penal, somente pudesse se formar tomando como base as provas produzidas mediante contradita da parte, seja na fase de inquérito, seja na fase processual.

Ocorre que a redação trazida pela Lei nº 11.690/08 ao artigo 155 do Código de Processo Penal, ao contrário do que se esperava, apenas sedimentou o entendimento comumente já adotado com base na regra anterior, possibilitando a utilização do material probatório colhido no inquérito policial, ainda que sem participação da defesa, desde que o livre convencimento do magistrado não seja exclusivamente pautado nesses elementos informativos.

Além disso, ao prever os termos “provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” como hipóteses excepcionais à regra do convencimento com base exclusivamente na apreciação da prova com base no contraditório judicial, permaneceu a questão: se a referida exceção quer dizer que quando se tratar de provas dessa natureza, ainda que produzidas na fase de inquérito, podem ser utilizadas como fundamento exclusivo para o livre convencimento motivado do juiz, mas desde que produzidas com contraditório, real ou diferido; ou se a exceção na realidade significa que tais provas, quando produzidas durante o inquérito, ainda que sem contraditório, podem ser utilizadas para o livre convencimento judicial.

O presente trabalho propõe não uma análise exaustiva do tema, mas um estudo colaborativo ao fomento da discussão, sob o ponto de vista constitucional e processual penal, quanto à dispensabilidade do contraditório no inquérito policial também nos casos de produção de provas não repetíveis.

Para tanto, considerar-se-á não apenas o procedimento investigativo que, por sua própria natureza, já dispensa a aplicação do instituto, mas também a efemeridade inerente à grande maioria dos vestígios colhidos e a urgência da produção das provas na fase pré- processual.

Tudo isso, como se verá adiante, longe de ferir qualquer garantia constitucional, apenas evidencia a incompatibilidade da produção de qualquer tipo de prova no inquérito policial com a aplicação obrigatória do contraditório real, o que não impede, todavia, a aplicação do contraditório em sua modalidade diferida ou postergada, a fim de possibilitar a utilização do material probatório para eventual decreto condenatório.

 

1 Inquérito Policial: natureza jurídica:

O inquérito policial é o principal procedimento investigativo previsto no ordenamento jurídico pátrio para a busca da verdade real na fase pré-processual, sendo conduzido pela Polícia Judiciária.

Como a atual legislação não conceitua o inquérito policial, recai sobre a doutrina a responsabilidade de delimitá-lo. A maior parte dos autores conceitua o inquérito policial com base em sua natureza, características e finalidades. Sendo assim, o inquérito seria um procedimento administrativo preparatório, e, dentre outras características, informativo e dispensável, conduzido pela polícia judiciária de modo inquisitorial, visando a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais. Sua finalidade precípua, segundo Nucci (2017, p. 102), é servir de lastro à formação da convicção do representante do Ministério Público, mas também colher provas urgentes, que podem desaparecer, após o cometimento do crime.

Lima (2017, p. 105) corrobora com esse entendimento, ao compreender o inquérito como o conjunto de diligências realizadas pela polícia investigativa com o fim de identificar as fontes de prova e de coletar os elementos de informação quanto à autoria e materialidade da infração penal, objetivando possibilitar o titular da ação penal a ingressar em juízo.

Doutrina minoritária, à qual se alinha Castro (2017), por exemplo, discute se a natureza jurídica do inquérito policial seria realmente a de procedimento administrativo, entendendo que seria, na verdade, um processo administrativo. Isso porque, apesar da resistência em se utilizar o termo “processo” fora da seara judicial, nada impede de etiquetar o inquérito como processo administrativo sui generis. Segundo Castro (2017), muito embora não existam partes no inquérito, existem imputados em sentido amplo; quanto à ausência de acusação formal, o autor entende que o que há no inquérito são controvérsias que precisam ser dirimidas por decisões do delegado de polícia, podendo resultar na restrição de direitos fundamentais do suspeito, medidas estas que, mesmo que não sejam vistas como sanções, possuem caráter coercitivo e representam certa agressão ao estado de inocência e de liberdade do indivíduo. Daí a natureza processual administrativa sui generis do inquérito policial, defendida pelo autor.

Apesar do que foi explanado, permanece prevalecendo na doutrina a ideia de que o inquérito é, na realidade, um procedimento e não um processo administrativo. Os defensores dessa corrente, dentre os quais encontra-se Lima (2017, p. 105), entendem que se trata de um procedimento, por haver uma sequência lógica para sua instauração, desenvolvimento e conclusão. No mesmo raciocínio, não se trata de processo porque, do inquérito, não resulta imposição direta de nenhuma sanção, nem há ainda o exercício de nenhuma pretensão acusatória, não existindo também, portanto, partes em sentido estrito, pois não há uma estrutura processual dialética.

Sendo assim, enquanto procedimento administrativo, o inquérito policial exime-se, em regra, da necessária aplicação de alguns institutos constitucionais relativos ao processo penal, tais como as garantias do contraditório e da ampla defesa, conforme será abordado mais adiante.

 

2 Teoria das provas no processo penal e garantias constitucionais aplicáveis:

O significado do vocábulo “prova” depende do contexto em que é empregado. No contexto da complexa atividade probatória do processo penal, que é o que nos interessa neste trabalho, “prova”, na doutrina de Gomes Filho (2005, p. 306-310), assume quatro sentidos diferentes: fonte, elemento, meio de investigação e meio de prova.

Para o autor, fonte de prova é o objeto ou a pessoa que possa trazer elementos de prova ao processo, ou seja, é tudo que for idôneo a fornecer resultados relevantes para a decisão do juiz, podendo ser fonte real ou pessoal.

Já os elementos de prova são aquilo que se extrai da fonte de prova quando ainda não foi valorada pelo juiz, ou seja, pode ser o conteúdo extraído de um documento, ou a informação prestada pela testemunha, vítima ou acusado, dentre outros (TONINI, 2002, p. 52).

Embora o Código de Processo Penal não diferencie meios de prova dos meios de investigação, tratando-os conjuntamente no Título VII (intitulado Da Prova), parte da doutrina, como Gomes Filho (2005, p. 309), entende que os meios de investigação (também chamados meios de pesquisa ou meios de obtenção de prova), diferente dos meios de produção de prova não são, por si só, fontes de conhecimento, servindo para adquirir coisas materiais, traços ou declarações dotadas de força probatória.

Os meios de prova, por sua vez, são os instrumentos ou atividades por intermédio dos quais os elementos de prova são introduzidos e fixados no processo, que uma informação importante contida numa fonte de prova seja transformada em elemento de prova.

Importante observação terminológica é trazida por Lima (2017, p. 584), ao destacar que, após a redação dada ao art. 155 do CPP pela Lei nº 11.690/08, a legislação passou a distinguir expressamente prova de elementos de informação. Dessa forma, o termo prova só poderia ser utilizado para se referir aos elementos de convicção produzidos na fase judicial, mediante contraditório e sendo este verdadeira condição de existência e validade das provas; ao passo que elementos de informação seriam aqueles obtidos na fase investigatória, sem a necessária participação dialética das partes, ou seja, sem a obrigatória observância do contraditório e, portanto, com valor probatório reduzido (CAPEZ, 1999, p. 70).

Apesar da questão terminológica trazida à tona pela redação do dispositivo legal em comento e destacada pelo referido autor, nesta produção acadêmica, o termo “prova” será tratado em seu sentido amplo, abarcando tanto os elementos de convicção obtidos na fase processual quanto aqueles colhidos na fase investigatória.

De acordo com Santos (1983, p. 11), citado em Nucci (2005, p. 352), a finalidade da prova é convencer o juiz acerca da verdade de um fato litigioso. O que se busca é a verdade processual, que é aquela atingível, alcançada no decorrer do processo e podendo corresponder à realidade ou não, embora seja com base nela que o juiz deva proferir sua decisão. Isso porque jamais será possível atingir com absoluta precisão a verdade histórica dos fatos analisados num caso concreto (LIMA, 2017, p. 588).

Sendo assim, e considerando as provas obtidas através dos meios de investigação na esfera extraprocessual, precisamente no inquérito policial, Brentel (2012, p. 20) considera que a investigação criminal pode ocorrer por duas vias.

A primeira delas seria por meio de procedimentos investigatórios simples, que não reflitam grandes discussões sobre violações a direitos (é o caso da oitiva informal de vítima e testemunhas na cena do crime, ou da identificação do suspeito); nesses casos, segundo a autora, a produção da prova independe de acompanhamento e autorização judicial.

A segunda via, por sua vez, corresponde a meios de investigação mais complexos, com potencial aptidão para lesionar direitos e garantias constitucionais do investigado (por exemplo, exames, vistorias, revistas, busca e apreensão, sequestro, interceptação, escuta e quebra de sigilo, ação controlada e infiltração policial, dentre outros); nesses casos, a produção das provas dependeria de autorização judicial, por serem mais invasivas e somente poderiam ser empregadas pela polícia em situações excepcionais.

Note-se que, muito embora os meios de investigação mais invasivos dependam de autorização e acompanhamento judicial para sua realização, tais fatores não os descaracterizam como atividade essencialmente extraprocessual, diferentemente dos meios de produção de prova, que são por sua natureza endoprocessuais e, portanto, judicializados, praticados na presença das partes, que atuam em contraditório real. No caso dos meios de investigação, a atividade é realizada pela polícia judiciária, sem efetiva participação das partes, em razão do elemento surpresa. A discussão que merece análise é se, no caso dos meios de investigação, o contraditório seria necessário para que pudessem servir ao convencimento do julgador.

Os atos processuais, em geral, submetem-se a uma série de garantias previstas no nosso ordenamento maior. Quanto à produção de provas no processo penal, podemos elencar algumas garantias constitucionais a que estão, em regra, vinculadas, senão vejamos.

A garantia do devido processo legal está disciplinada no art. 5ª, LIV, da Constituição Federal e prevê que ninguém pode ser privado de sua liberdade ou bens, senão por meio de processo que se desenvolva na forma prevista em lei. Especificamente na esfera do processo penal, Fernandes (2002, p. 42-44), bem como Rebouças (2017, p. 92) denominam a garantia de “devido processo penal”, sintetizando o direito à prova e ao procedimento, bem como os princípios da proporcionalidade, igualdade e contraditório; trata-se, portanto, do princípio- garantia em torno da qual gravitam as demais garantias processuais penais.

Quanto à ampla defesa, prevista no inciso LV do mesmo dispositivo constitucional, é a garantia aos acusados, nos processos judiciais ou administrativos, de todos os meios de defesa e os recursos a estes inerentes. Para Nucci (2017, p. 35-36), a ampla defesa é uma forma de compensar a força que o Estado possui enquanto órgão acusador, valendo-se das informações e dados que extrai através de seus órgãos; sendo assim, a ampla defesa tem por fim mitigar esse contraste, proporcionando ao réu um tratamento diferenciado e justo na relação processual.

O contraditório, por sua vez, previsto no inciso LV do art. 5ª da Constituição, é a garantia da relação dialética entre as partes, podendo contrariar os atos e termos processuais, dos quais se deverá ter ciência. Em outras palavras, preconiza que o adversário tem sempre o direito de se manifestar contra toda alegação fática ou apresentação de prova feita no processo, de modo a equilibrar a relação processual entre Estado e réu (NUCCI, 2017, p. 38). Embora tanto o contraditório quanto a ampla defesa estejam intimamente relacionados e sejam manifestação da garantia genérica do devido processo legal, tais garantias não guardam entre si relação de primazia ou derivação; são manifestações normalmente simultâneas, ligadas entre si pelo processo, mas que não se vinculam, tanto é que na fase inquisitiva da persecução penal brasileira, como já se vem discutindo, embora se garantam mecanismos de defesa do investigado, o mesmo não ocorre quanto ao contraditório que, como será argumentado, é, em regra, dispensável em qualquer caso, na referida fase extraprocessual.

 

3 Fenômenos probatórios no inquérito policial: provas cautelares, não repetíveis e antecipadas:

Após feitos os apontamentos quanto à teoria das provas no processo penal em geral, cumpre analisar os fenômenos probatórios especificamente no que diz respeito à fase investigativa. Ou seja, do presente capítulo em diante, o foco do trabalho será dado aos elementos de informação e aos meios investigativos, bem como à possibilidade de sua utilização para o livre convencimento motivado do magistrado, considerando que, em regra, são elementos probatórios produzidos independentemente da contradita da parte.

O inquérito policial abarca todas as informações que tenham potencial relevância probatória e que sejam colhidas durante as investigações. Algumas das provas produzidas nesta fase pré-processual deverão ser repetidas em juízo para que tenham validade. Outras provas, por sua natureza e características próprias como transitoriedade ou outras circunstâncias, estarão impedidas de terem nova produção durante a fase processual. Daí a existência de cautelares em relação às provas, visando assegurar a eficiência da atividade probatória, diante do risco de que a ação do tempo impeça ou dificulte que pessoas ou coisas possam servir como fonte de prova (GOMES FILHO, 2009, p. 252)

Dessa forma, o teor do artigo 155 do Código de Processo Penal traz os termos “provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”, não se encarregando, entretanto, de lhes apontar os significados. Tais conceitos são, portanto, trazidos pela doutrina, o que será abordado a seguir. Para Lima (2017, p. 585-586), provas cautelares são aquelas em que há um risco de desaparecimento do objeto da prova em razão do decurso do tempo. Podem ser produzidas judicialmente ou na fase investigativa, mas, em regra, dependem de autorização judicial para sua produção. É o caso da interceptação telefônica, caso em que o investigado somente terá ciência da prova após a conclusão das diligências, impossibilitando, portanto, o contraditório real, situação em que a parte contrária somente poderá contraditar a prova depois da sua concretização. Em relação a essas provas, o autor defende que o contraditório será, portanto, diferido, postergado ou adiado.

Com relação às provas antecipadas, o autor entende serem aquelas produzidas na fase investigatória ou em juízo, dessa vez mediante contraditório real, todavia em momento processual distinto daquele legalmente previsto, ou até mesmo antes do início do curso do processo, em razão de situação de urgência e relevância. Assim como as provas cautelares, dependem sempre de autorização judicial para sua produção. É o caso da oitiva antecipada de testemunha hospitalizada e em estado grave de saúde, sendo necessária a presença do juiz e a participação das partes sob contraditório. Trata-se do depoimento ad perpetuam rei memoriam, previsto no art. 225 do CPP O depoimento, nesse caso, possui o mesmo valor legal do que se tivesse sido colhido durante a instrução processual.

No que se refere às provas não repetíveis, Lima (2017, p. 585) afirma que se tratam daquelas que, uma vez produzidas, não tem como ser novamente coletadas ou produzidas, em virtude do desaparecimento, destruição ou perecimento da fonte probatória. Também podem ser produzidas tanto na fase judicial quanto na investigatória, mas, diferentemente das provas cautelares e das antecipadas, não dependem, em regra, de autorização judicial, ante a urgência de sua produção e o risco de que haja dispersão dos elementos probatórios. Sendo assim, podem ser produzidas por ordem da própria autoridade policial imediatamente após tomar conhecimento da prática delituosa. É o caso do exame de corpo delito num caso de lesões leves, em que os vestígios deixados pela infração penal podem brevemente desaparecer; até mesmo por obediência ao mandamento disposto no art. 6º, inciso VII, do CPP, deve a autoridade policial, logo que tomar conhecimento da prática delituosa, determinar, além de outras providências necessárias, que se proceda ao exame de corpo de delito e quaisquer outras perícias.

Greco Filho (2010, p. 204-205) ressalta, quanto às provas não repetíveis, que, na realidade, a prova criminal nunca poderia ser genuinamente repetida, isto é, reproduzida com fidelidade, pois isso pressuporia a existência da mesma conjuntura que permeou a colheita original da prova, a imutabilidade da fonte da qual emana a prova e a garantia do mesmo resultado. Sendo assim, o autor defende que, tecnicamente, o que há é uma nova produção de prova sobre a mesma fonte, mas nunca uma prova repetida ou repetível, uma vez que será produzida em diferentes circunstâncias fáticas e temporais, podendo ou não levar ao resultado alcançado na primeira produção da prova.

Independentemente dessa análise terminológica, interessa ao presente trabalho, quanto às provas não repetíveis, discutir a obrigatoriedade ou não de aplicação do contraditório na sua colheita, considerando que tais provas referem-se a casos em que a urgência de sua produção é tão gritante que dispensa, até mesmo, autorização judicial, diferentemente das provas cautelares e antecipadas. Sendo assim, e considerando a exceção prevista no art. 155 do CPP, abre-se a margem para discutir se, no caso específico dessas provas, pode haver a dispensa do contraditório sem que a prova, não repetida em juízo, seja desconsiderada para o convencimento judicial.

 

4 Dispensabilidade do contraditório quanto às provas não repetíveis produzidas no inquérito policial:

Como já visto anteriormente, para a maior parte da doutrina, o inquérito policial é um procedimento administrativo inquisitorial. Sendo assim, embora limitada à legalidade, dispõe a autoridade policial de certa discricionariedade no conduzir da fase investigativa, e os vícios porventura produzidos nessa fase, em regra, não contaminam o processo.

Enquanto procedimento inquisitorial, o inquérito policial dispensa a obrigatoriedade do contraditório na produção dos elementos de informação quanto a determinado fato criminoso (LIMA, 2017, p. 584). Dessa forma, o entendimento dos Tribunais2, mesmo antes da Lei nº 11.690/08, que trouxe a nova redação do art. 155 do CPP, sempre foi no sentido de que eventual decreto condenatório não pudesse se embasar exclusivamente em elementos de convicção que tivessem sido produzidos sem contraditório.

Essa é a regra que prevalece, inclusive após a redação trazida ao artigo 155 do Código de Processo Penal pela Lei nº 11.690/08, que dispõe que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”.

O dispositivo sacramentou a possibilidade de utilização, para convencimento do magistrado, daquelas provas colhidas durante a fase investigativa, neste caso, independentemente de contraditório uma vez que, pela letra da própria lei, referido instituto pertence à fase judicial. Ademais, a própria redação da lei deixa claro que, isoladamente, elementos informativos não são idôneos para fundamentar uma condenação, podendo, por outro lado, se somar à prova produzida em juízo, servindo, portanto, como mais um elemento na formação da convicção do órgão julgador (LIMA, 2017, p. 585).

Da leitura do dispositivo, a questão que surge é se a excepcionalidade prevista quanto às “provas cautelares, não repetíveis e antecipadas” corresponde à possibilidade de essas provas serem utilizadas com exclusividade para motivar uma decisão judicial, ainda que produzidas no inquérito, mas desde que com contraditório; ou se a exceção prevista significa que, ainda que produzidas no inquérito e seguindo a regra da desnecessidade de contraditório, essas provas podem ser utilizadas como motivação exclusiva para fundamentar o convencimento judicial.

Grande parte da doutrina (LIMA, 2017, p. 586; BRENTEL, 2012, p. 13) adota a primeira interpretação, defendendo a aplicação obrigatória do contraditório no caso de provas cautelares (contraditório diferido), não repetíveis (contraditório diferido) e antecipadas (contraditório real), em razão da impossibilidade de produzi-las novamente em juízo, não parece ser este o melhor entendimento no que se refere especificamente às provas não repetíveis. Neste caso, inclusive, tais provas, ainda que produzidas na fase pré-processual, poderiam servir como base exclusiva para motivar um decreto condenatório. Nesse sentido, a propósito, posicionou-se o Superior Tribunal de Justiça3, apontando a valia de que o uso das provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis pode ser exclusivo:

“Vige em nosso ordenamento jurídico o princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, segundo o qual o magistrado pode livremente apreciar as provas, adotá-las ou recusá-las mediante convicção motivada. Contudo, há proibição expressa de fundamentação exclusiva nos elementos do inquérito, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. Inteligência do art. 155 do Código de Processo Penal”.

 

Lima (2017, p. 586) também adota a posição de que, mesmo no caso das provas não repetíveis produzidas durante o inquérito, para que possam ser utilizadas no curso do processo, imperiosa será a observância do contraditório sobre a prova, permitindo que as partes possam discutir sua admissibilidade, regularidade e idoneidade. Exemplo disso é quando o art. 159, §5º, inciso I, do CPP permite que as partes, no curso do processo judicial, requeiram a oitiva dos peritos para esclarecimento da prova produzida no inquérito ou para responderem a quesitos.

Quanto ao assunto, não diferente é o entendimento de Nucci (2017, p. 103), ao afirmar que, em nível ideal, as provas colhidas em fase de inquérito policial somente deveriam ser utilizadas para o oferecimento da peça inicial acusatória, não se podendo cogitar utilizar em juízo provas colhidas sem a participação do investigado ou de seu defensor. Por outro lado, o autor considera o fato de que as provas perecíveis colhidas durante o inquérito, assunto aqui tratado, não podem ser desprezadas pelo juiz, mesmo que não tenham sido contrariada pelo investigado.

Nesse sentido, Nucci (2017, p. 103-104) propõe que, quanto às provas produzidas durante o inquérito e que possam ser repetidas em juízo sob o crivo do contraditório, seja considera a produção em juízo e desprezada a prova produzida em inquérito; e, quanto às provas não repetíveis produzidas em inquérito, que seja permitido à defesa contrariá-la, em juízo, produzindo contraprova. O autor também defende, portanto, quanto às provas não repetíveis, a aplicação do contraditório diferido. Dessa forma, por tudo o que foi exposto, entende-se que a interpretação mais apropriada para o art. 155 do Código de Processo Penal e em maior consonância com os princípios e garantias constitucionais, é a que defende ser a aplicação do contraditório necessária para validar as provas cautelares, antecipadas e, inclusive, as não repetíveis. Tais provas configuram, portanto, exceção à regra geral da dispensabilidade do contraditório durante o inquérito policial, tendo em vista a impossibilidade de produzi-las novamente em juízo sob o crivo do contraditório real.

Sendo assim, considerando a urgência na produção das provas cautelares em sentido amplo, bem como o risco de se perderem a qualquer momento os vestígios, revela-se a importância da fase de inquérito policial e dos elementos de informação colhidos no decorrer dessa fase. Todavia, não se pode olvidar dos direitos e garantias em favor do investigado, que precisa ter a oportunidade de contraditar toda e qualquer prova produzida em seu desfavor para que seja utilizada como base para um decreto condenatório.

Importante frisar que a exigência do contraditório, no caso das provas não repetíveis, estará atendida pela simples oportunidade oferecida ao réu de questionar a prova anteriormente já produzida e concluída. Ou seja, ainda que não se contradite ou não se formulem quesitos ao perito, por exemplo, mas desde que tenha sido dada a oportunidade de fazê-lo, terá se configurado o contraditório diferido ou postergado, podendo ser utilizada a prova produzida em inquérito policial para o livre convencimento motivado do juiz.

 

Conclusão:

O presente trabalho propôs discutir, sob a ótica constitucional e processual penal, o real alcance da exceção prevista no artigo 155 do Código de Processo Penal, no que diz respeito às provas cautelares, não repetíveis e antecipadas e sua relação com o contraditório, quando produzidas durante o inquérito policial.

Para fundamentar a discussão, partiu-se da reflexão quanto à natureza jurídica do inquérito policial que, para a maior parte da doutrina, como se demonstrou, é de procedimento administrativo, tendo como uma de suas principais características a inquisitoriedade. Dessa forma, inerente à sua própria natureza jurídica, encontra-se a dispensabilidade da garantia do contraditório na produção de seus elementos informativos, uma vez que dispõe a autoridade policial de discricionariedade na sua condução, e em razão da ausência de lide ou partes nessa fase da persecução penal.

Superada a discussão quanto à natureza jurídica do inquérito policial e considerando também que, em regra, o contraditório é dispensado na produção de seus elementos de convicção, o trabalho passou a analisar a teoria das provas no processo penal em geral, para depois focar nas provas, aqui tratadas no seu sentido amplo, produzidas durante a fase pré- processual.

Nesse sentido, pode-se verificar que os elementos de informação colhidos na fase de inquérito não podem ser utilizados como fundamento exclusivo para um decreto condenatório, tendo em vista o próprio teor do art. 155 do CPP, que consolidou entendimento jurisprudencial anteriormente já adotado, como foi demonstrado.

Por outro lado, a redação do mesmo dispositivo legal abre margem à discussão sobre as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas, se, embora produzidas durante o inquérito e por isso devam se somar às provas produzidas na fase judicial para o convencimento do juiz, se seriam elas exceção à regra da dispensa do contraditório no inquérito policial ou se a ele devem obediência.

Quanto às provas cautelares em sentido estrito e às provas antecipadas, constatou-se que a doutrina é uníssona no sentido de que é necessário não apenas autorização judicial para sua produção, como também o respeito ao contraditório, seja ele diferido, como no caso das provas cautelares, seja ele real, no caso das provas antecipadas.

No que diz respeito às provas não repetíveis, por outro lado, o assunto merecia maior atenção e, portanto, foi a proposta de discussão do presente trabalho. Isso porque, além de serem provas de tamanha urgência e relevância em sua produção, sob pena de se perderem os vestígios, há dispensa de autorização judicial para sua colheita, ficando a critério da discricionariedade da autoridade policial.

Nesse último caso, considerando a sua natureza ao menos aparentemente mais próxima das demais diligências essencialmente investigativas, uma vez que produzidas exclusivamente com base na discricionariedade própria do inquérito policial, discutiu-se se as provas não repetíveis seguiriam a regra geral do inquérito, dispensando-se o contraditório, ou se, como as demais provas cautelares, acompanhariam a exceção, devendo submeter-se à contradita da parte investigada ou acusada.

Após revisão bibliográfica, verificou-se que o entendimento que prevalece é no sentido de, mesmo no caso das provas não repetíveis, ser necessário o respeito ao contraditório, ainda que na sua modalidade diferida, tendo em vista a urgência na produção de tais elementos de convicção que, pela própria natureza, impossibilita à parte contraditar no momento em que a prova está sendo produzida.

Conclui-se que esse é o entendimento que mais condiz com as garantias constitucionais em favor do investigado pois, como são provas que, pelo seu perecimento, são impossibilitadas de serem repetidas em juízo, o mínimo que se pode fazer é possibilitar à parte o seu questionamento posterior, formulando quesitos ao perito, ou apresentando contraprova, por exemplo.

Por todo o exposto, espera-se que o presente trabalho tenha contribuído para a discussão em torno do contraditório no inquérito policial, especialmente no que diz respeito à produção de provas irrepetíveis nessa fase da persecução penal. A relevância desse tipo de discussão demonstra-se para que se dê maior importância ao inquérito policial e aos elementos de convicção nele produzidos. Isto é, muito embora tais elementos probatórios não possam ser usados com exclusividade para embasar um decreto penal condenatório, podem se somar às provas produzidas em juízo no mesmo sentido.

Além disso, considerando que há vestígios que perecem com o tempo, a possibilidade de colheita, durante a fase de inquérito, de provas não repetíveis, muito embora deva obediência ao contraditório postergado ou diferido, não diminui a importância dessa produção de prova. Muito pelo contrário, evidencia a relevância de um bom trabalho executado na fase pré- processual, pois, somado a outros elementos probatórios, pode ser determinante para a condenação ou não de um indivíduo.

 

Referências Bibliográficas:

 

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1 Delegada da Polícia Civil do Estado do Paraná. Atuou como Investigadora da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (2016-2018) e, anteriormente, como advogada, inscrita na Seccional Rio Grande do Norte (2012-2016). Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN (2012). Especialista na área Penal e Processual Penal, pela Universidade Potiguar - UnP/Laureate International Universities (2013). Atuou na área de Direitos Humanos junto ao Programa de Promoção e Defesa de Direitos Humanos da UFRN - Lições de Cidadania (2008-2009), bem como no Programa, também promovido pela UFRN, para atendimento in loco da população carente do RN - Justiça Itinerante (2010). Estagiária do Ministério Público do Rio Grande do Norte - MPRN (2010-2012), com experiência nas áreas Criminal, Infância e Juventude, Idoso, Família e Educação. Concluiu vários cursos de capacitação na área de segurança pública, promovidos pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) e pela Academia da Polícia Civil do Estado de Minas Gerais (Acadepol/MG). Email: nessacriz@hotmail.com.


2 STF, HC 96.356/RS, Rel. Min. Marco Aurélio; STF, 1ª Turma, RE 136.239/SP, Rel. Min. Celso de Mello, j. 07/04/1992, DJ 14/08/1992.


3 STJ, HC 156333/ES, Rel. Gilson Dipp. DJ: 05/04/2011