PRISÃO EM FLAGRANTE E O NÃO ARBITRAMENTO DE FIANÇA SOB UM VIÉS PROTETIVO DA MULHER

PEREIRA, Thaís Orlandini1

 

RESUMO:

O presente artigo tem por enfoque analisar se a autoridade policial pode deixar de arbitrar fiança ao flagranteado, sob a ótica de um viés protetor da mulher, hipossuficiente legal, quando presentes os requisitos para decretação da prisão preventiva nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher. Para isso, analisa-se brevemente o histórico do cargo de delegado de polícia, as hipóteses de arbitramento de fiança pela autoridade policial nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, bem como os requisitos da prisão preventiva em tais infrações penais.Por derradeiro, os divergentes posicionamentos doutrinários acerca do tema são analisados.

Palavras-chave: Autoridade Policial; Fiança; Prisão Preventiva; Crimes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

 

FLAGRANT PRISON AND NON-ARBITRATION OF BODY UNDER A PROTECTIVE WAY OF WOMEN

 

ABSTRACT: The aim of this article is to analyze whether the police authority can fail to arbitrate bail to the flagrantee, from the point of view of a protective bias of the woman, which is legal, when the requirements for decreting pre-trial detention in crimes of domestic and family violence against woman. In order to do so, we will briefly analyze the history of the position of police officer, the hypotheses of bail-out by the police authority in crimes of domestic and family violence against women, as well as the requirements of pre-trial detention in such criminal offenses. Lastly, the divergent doctrinal positions on the subject are analyzed.

Keywords: Police authority; Bail.Preventive Arrest; Crimes of Domestic and Family Violence against Women.

 

 

 

 

Introdução:

Desde os primórdios da civilização humana, existiram regras que disciplinam as contenções humanas, oriundas das mais diversas motivações, berço da atual prisão preventiva. Tal instituto, nos dias atuais e segundo a legislação pátria, é utilizado como instrumento de contenção excepcional, no bojo do inquérito policial ou da ação penal, cuja ordem é emitida pelo juiz da causa.

Neste diapasão, podem representar, para tal contenção, a autoridade policial e/ou o representante ministerial, sendo, portanto, instrumento processual para casos urgentes que necessitem a custódia estatal, conforme as regras do Código de Processo Penal e leis correlatas.

A Lei nº 11.340/2006, conhecida por “Lei Maria da Penha”, uma homenagem à cearense Maria da Penha Maia Fernandes, a qual sobreviveu à tentativa de homicídio praticada por seu então marido e passou a atuar em movimentos de combate à violência familiar contra a mulher, estabeleceu diversos instrumentos de proteção à mulher vítima de violência doméstica, dentre eles, a previsão de prisão preventiva do agressor.

Consta no artigo 322 do ‘codex processual’, que o delegado de polícia somente poderá conceder fiança no caso de infração penal com pena privativa de liberdade máxima não superior a 4 (quatro) anos, desde que inexistam os impeditivos legais previstos nos arts. 3232 e 3243 do Código de Processo Penal, bem como não seja caso de crime de descumprimento de medida protetiva, conforme disciplinado pela Lei 11.340/2006 para casos que envolvem situação de violência doméstica e familiar.

Dentre os impeditivos legais, ressalta-se o constante no art. 324, inc. IV4 do Código de Processo Penal, o qual dispõe que não será concedida fiança quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Sob outro vértice, depreende-se que, nos termos da Lei 12.830/2013, o cargo de delegado de polícia compõem as carreiras jurídicas brasileiras, haja vista constar no artigo 2º5 de referida lei.

Assim, questiona-se: o Delegado de Polícia pode analisar os requisitos da prisão preventiva antes de arbitrar fiança, nos casos de violência doméstica e familiar? A autoridade policial pode, quando presente alguma situação excepcional, elencada no artigo 312 do CPP, deixar de materializar o arbitramento, colocando a decisão da liberdade plenamente nas mãos do juiz competente, buscando-se evitar o cometimento de outros crimes em desfavor da mulher vítima de violência doméstica?

O presente artigo buscará responder estes questionamentos, conforme aduz o ordenamento jurídicos a doutrina pátria.

 

 

1. Breve Histórico do Cargo de Delegado de Polícia no Brasil:

Analisando a história processual criminal brasileira, tem-se que o Código de Processo Criminal de 1832 estabeleceu, em seu artigo 12, o seguinte:

Art. 12. Aos Juízes de Paz compete:
§ 1º Tomar conhecimento das pessoas, que de novo vierem habitar no seu Districto, sendo desconhecidas, ou suspeitas; e conceder passaporte às pessoas que lhe o requererem.
§ 2º Obrigar a assinar termo de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por hábito, prostitutas, que perturbam o sossego público, aos turbulentos, que por palavras, ou ações ofendem os bons costumes, a tranquilidade pública, e a paz das famílias.
§ 3º Obrigar a assinar termo de segurança aos legalmente suspeitos da pretensão de cometer algum crime, podendo culminar neste caso, assim como aos compreendidos no paragrapho antecedente, multa até trinta mil réis, prisão até trinta dias, e três mezes de Casa de Correcção, ou Officinas publicas.
§ 4º Proceder a Auto de Corpo de delicto, e formar a culpa aos delinquentes.
§ 5º Prender os culpados, ou o sejam no seu, ou em qualquer outro Juízo.
§ 6º Conceder fiança na fórma da Lei, aos declarados culpados no Juízo de Paz.
§ 7º Julgar: 1º as contravenções ás Posturas das Câmaras Municipais: 2º os crimes, a que não esteja imposta pena maior, que a multa até cem mil réis, prisão, degredo, ou desterro até seis meses, com multa correspondente á metade deste tempo, ou sem ella, e tres mezes de Casa de Correcção, ou Officinas publicas onde as houver.
§ 8º Dividir o seu Districto em Quarteirões, contendo cada um pelo menos vinte e cinco casas habitadas.

 

A função de Delegado de Polícia, com essa nomenclatura, foi criada pela Lei n.261 de 1841, conforme se verifica abaixo.

Art. 1º Haverá no Municipio da Côrte, e em cada Província um Chefe de Policia, com os Delegados e Subdelegados necessários, os quaes, sobre proposta, serão nomeados pelo Imperador, ou pelos Presidentes. Todas as Autoridades Policiais são subordinadas ao Chefe da Polícia.

Art. 2º Os Chefes de Polícia serão escolhidos d'entre os Desembargadores, e Juízes de Direito: os Delegados e Subdelegados d'entre quaisquer Juízes e Cidadãos: serão todos amovíveis, e obrigados a aceitar.

Art. 3º Os Chefes de Polícia, além do ordenado que lhes competir como Desembargadores ou Juízes de Direito, poderão ter uma gratificação proporcional ao trabalho, ainda quando não accumulem o exercicio de um e outro cargo.

Constata-se, assim, que o cargo de Delegado de Polícia tem gênese no cargo de juiz de direito, haja vista a “mens legis” ter se dado no sentido da substituição imediata do magistrado pelo delegado, quando da análise de situações flagranciais, pois ambos os cargos exigem conhecimento jurídico.

Neste sentido, William Garcez explana que a função que o delegado de polícia exerce no comando das investigações criminais é semelhante à função que o juiz de direito desempenha na condução dos processos judiciais. Ambas as autoridades desempenham um papel de presidência dos trabalhos, aplicando as normas jurídicas em casos concretos, guardadas as respectivas peculiaridades, cada um na sua esfera de atuação. Não raro, o legislador se refere ao delegado de polícia como "autoridade de polícia judiciária". (Disponível em < http://delegadowilliamgarcez.jusbrasil.com.br/artigos/333662213/o-delegado-de-policia-como-garantido >. Acesso em: 3 jul.2018).

Muitos diplomas legais, em especial, os processuais, elencam os poderes investigativos atinentes à autoridade policial, tais como a Lei de Organização Criminosa6, Lei de Interceptação Telefônica7 e Lei de Entorpecentes8 e, após a publicação da Lei 12.830/2013, não há dúvidas de que o cargo de delegado de polícia compõem as carreiras jurídicas, portanto, é perfeitamente possível que a autoridade policial faça a análise do caso que lhe é apresentado, adotando as providências pertinentes a sua atribuição, como primeiro juiz da causa quando de situações flagranciais, haja vista ser a primeira autoridade em contato com o crime que passa a ser investigado.

 

 

2. Arbitramento da Fiança pelo Delegado de Polícia:

Fiança é uma garantia real. É uma contracautela com o objetivo de deixar o indiciado ou réu em liberdade, mediante uma caução que consiste em depósito em dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos de dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou até mesmo em hipoteca escrita em primeiro lugar, conforme dispõe o art. 330 do Código de Processo Penal9. (TOURINHO FILHO, 2009, p. 655).

Com as alterações oriundas da Lei n. 12.403/2011, que modificou o Código de Processo Penal nos dispositivos relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares, a liberdade provisória com fiança deixou de funcionar apenas como medida de contracautela (art. 310, inc.III, CPP), passando a ser também medida cautelar autônoma, podendo ser determinada, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução de seu andamento ou em caso de resistência injustificada a ordem judicial (BRASILEIRO, 2018, p.1230).

No presente feito, a fiança será tratada como medida de contracautela substitutiva da prisão em flagrante, pois o arbitramento como cautelar autônoma é privativo da autoridade judicial.

Depreende-se do ordenamento jurídico, que a autoridade policial somente poderá conceder fiança no caso de infração penal com pena privativa de liberdade máxima não superior a 4 (quatro) anos (art. 322 CPP), desde que existam os impeditivos legais previstos nos arts. 323 e 324 do Código de Processo Penal.

Dentre os impeditivos legais supramencionados, cabe destacar o previsto no art. 324, inc. IV do Código de Processo Penal:

Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

 

Vale destacar que a Lei 13.641/2018, a qual alterou a Lei Maria da Penha para tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência, impossibilitou o arbitramento da fiança pela autoridade policial em referidos delitos.

Segundo Rafael Siqueira, na maioria dos delitos perpetrados em desfavor das mulheres no ambiente doméstico e familiar, a pena não ultrapassa o patamar de quatro anos. É o que se constata, por exemplo, dos preceitos secundários dos crimes de ameaça (art. 147 do CP: Pena – detenção de um a seis meses ou multa), injúria (art. 140 do CP: Pena – detenção de um a seis meses ou multa) e lesão corporal (art. 129, § 9º, do CP: Pena – detenção de três meses a três anos). (Disponível em: <https://rafaelsiqueira7902.jusbrasil.com.br/artigos/392991893/a-fianca-pode-ser-arbitrada-pelo-delegado-de-policia-nos-crimes-que-envolvam violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher?ref=topic_feed>. Acesso em: 08 jul. 2018).

Verifica-se, então, que a autoridade policial, como integrante jurídico do sistema processual-penal, não só pode, como deve analisar, ainda que de forma precária, os pressupostos da prisão preventiva nos casos que envolver flagrantes delitos em crimes de violência doméstica, deixando-se de arbitrar fiança, caso presentes os requisitos da preventiva, e, por conseguinte, não colocar em liberdade imediata conduzidos que podem representar perigo iminente.

Desta forma, quando presente tais requisitos, aos olhos do Delegado de Polícia quando da análise do caso concreto, este deixaria de materializar a fiança, ao invés de aplicá-la em montante pecuniário impossível de ser levantado pelo investigado, o que poderia suscitar ilegalidades posteriores.

 

 

3. Requisitos da prisão preventiva em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher:

A prisão preventiva pode ser definida como uma espécie de prisão cautelar decretada durante a fase de investigação policial ou no curso da ação penal, quando presentes indícios de autoria e materialidade do delito e se fizer necessária para a garantia da ordem pública, assegurar a aplicação da lei penal, por conveniência da instrução processual, houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou no caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares, nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal10.

Os pressupostos da prisão preventiva são o fumus comissi delicti, consubstanciado pela prova da materialidade e indícios suficientes de autoria ou de participação, e o periculum libertatis, consistente na garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou garantia de aplicação da lei penal (BRASILEIRO, 2017, p.876).

Já as hipóteses de admissibilidade da prisão preventiva estão elencadas no art. 313 do Código de Processo Penal:

Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.

 

A redação do art. 313, inc.III do CPP não diferencia a natureza da pena do crime doloso. Assim, independente da pena cominada ao delito (detenção ou reclusão) e do quantum da pena a ele cominado, a prisão preventiva pode ser decretada como medida de ultima ratiopara compelir o agente a observar as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha, mas desde que presentes um dos fundamentos que autorizam a prisão preventiva (BRASILEIRO, 2018, p. 1228).

Destarte, constata-se que a autoridade policial, como aplicadora do direito, pode analisar, ainda que de maneira precária, os requisitos para cabimento da prisão preventiva nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, os quais consistem no fumus comissi delicti (prova da materialidade e indícios suficientes de autoria ou de participação) e o periculum libertatis, (garantia da ordem pública, da ordem econômica, conveniência da instrução criminal ou garantia de aplicação da lei penal),somados à hipótese de admissibilidade consistente em crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, com o objetivo de garantir a execução das medidas protetivas de urgência, visando a maior proteção possível.

 

 

4. A possibilidade da autoridade policial não arbitrar fiança quando verificar a existência dos requisitos da prisão preventiva:

Conforme a lei processual, a autoridade policial somente poderá conceder fiança no caso de infração penal com pena privativa de liberdade máxima não superior a 4 (quatro) anos, fato este preceituado no art. 322 do Código de Processo Penal.11

Da mesma forma, os artigos 323 e 324 do Código de Processo Penal determinam que se deve deixar de lado o arbitramento do instituto da fiança quando presentes os pressupostos legais.

Desta feita, sob a interpretação sistemática do Direito, como ciência jurídica, bem como aos olhos de um viés protetor da mulher, hipossuficiente legal, abre-se a interpretação de que o delegado de polícia, a depender do caso concreto, quando houver indícios de presença dos pressupostos dos artigos 312 e 313 do CPP, deixar de arbitrar fiança ao flagranteado, deixando, tal análise libertária, tão somente ao magistrado competente.

Desta assertiva, deixará a autoridade policial de colocar em possível liberdade o agressor doméstico, buscando, desde logo, a proteção imediata da própria vítima, vulnerável, em regra, para a questão.

Há quem entenda, como Renato Brasileiro de Lima, que se o art. 322 do CPP dispõe que a autoridade policial poderá conceder fiança às infrações penais com pena máxima até 4 (quatro) anos, não se pode estabelecer qualquer outro requisito para concessão da fiança, sob pena de indevida violação ao princípio da legalidade (2017,p. 1231).

De outro norte, há correntes doutrinárias no sentido de que o delegado de polícia não pode arbitrar fiança nos casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher, pois, possivelmente, os requisitos da prisão preventiva devem estar presentes e, tal análise, é privativa do juiz de direito, de modo que, não tendo o delegado de polícia atribuição para decretar a prisão preventiva, também não poderia fazer o exame do cabimento da fiança. (Disponível em: <http://genjuridico.com.br/2016/10/06/a-fianca-pode-ser-arbitrada-pelo-delegado-de-policia-nos-crimes-que-envolvam-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher/>. Acesso em: 09 jul. 2018).

Neste sentido, a Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (COPEVID), criada pelo Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH) do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais (CNPG), editou o Enunciado n. 06, o qual dispõe acerca da impossibilidade de fiança, nos seguintes termos:

“Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idosa, enfermo ou pessoa com deficiência, é vedada a concessão de fiança pela Autoridade Policial, considerando tratar-se de situação que autoriza a decretação da prisão preventiva nos termos do artigo 313, III, CPP”.

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar situações de violência contra a mulher no Brasil apresentou o Projeto de Lei n. 6.008, de 2013, propondo a alteração da Lei n. 11.340/2006 para, dentre outros dispositivos, vedar expressamente a concessão de fiança pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Segundo o artigo 4º do projeto, o parágrafo único do art. 322 do CPP passaria a vigorar com a seguinte redação, excluindo a incidência do seu caput: “Parágrafo único. Nos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher e nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em quarenta e oito horas”. (Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/39606/fianca-policial-na-lei-maria-da-penha-possibilidade>. Acesso em: 09 jul. 2018.)

A justificativa do projeto de lei é que, embora o Código de Processo Penal proíba o arbitramento de fiança pela autoridade policial nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, pois incumbe à alçada judicial analisar os requisitos da prisão preventiva, o sistema de Justiça tem desprezado esse comando para tolerar a liberdade imediata dos agressores na própria delegacia, fato que tem causado a continuidade da violência e até assassinatos de mulheres após o pagamento de fiança arbitrada pela polícia. (Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/39606/fianca-policial-na-lei-maria-da-penhapossibilidade>. Acesso em: 09 jul. 2018).

O Código de Processo Penal dispõe em seu artigo 322 que cabe ao Delegado de Polícia e ao Juiz de Direito arbitrarem fiança. Na sequência (arts. 323 a 324), disciplina as hipóteses de não concessão do instituto suso mencionado. Tais artigos estão alocados dentro do Capítulo IV, Título IX, o que, por interpretação jurídica, demonstra que a vedação constante art. 324, inc. IV do CPP se aplica tanto ao Juiz de Direito, como ao Delegado de Polícia.

Assim, refuta-se tanto a ideia de que a autoridade policial deve apenas verificar a pena máxima da infração penal para arbitrar ou não fiança (máxima de quatro anos), quanto a ideia de que esta autoridade pode, segundo seu entendimento fundamentado, deixar de arbitrar fiança nos casos que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher e, cumulativamente, estejam presentes os requisitos da prisão preventiva.

Ademais, o Delegado de Polícia não pode ser um aplicador cego e literal da legislação, mas, sim, um operador do direito que deve agir de forma harmônica com o ordenamento jurídico e, como tal, não só pode, como deve analisar, ainda que de forma precária, os pressupostos da prisão preventiva quando, tão somente, dos casos que envolver flagrantes delitos em violência doméstica, deixando-se de colocar em liberdade imediata conduzidos que podem representar perigo iminente.

 

 

Considerações Finais:

A Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006) buscou tratar os agressores com maior rigor, em defesa das mulheres vítimas de violência doméstica em suas variadas modalidades. Dentre várias medidas, autorizou o cabimento da prisão preventiva do acusado.

Após análise dos requisitos legais, debateu-se sobre a possibilidade de a autoridade policial arbitrar, ou não, fiança aos agressores que cometem crimes contra a mulher quando da análise dos flagrantes delitos.

Conforme constatado, o Código de Processo Penal legitima tanto o Delegado de Polícia quanto o Juiz de Direito a arbitrar fiança, bem como elenca as hipóteses em que a fiança não é cabível, dentre elas, quando presentes os requisitos da prisão preventiva.

Desta feita, levantou-se a adequação da interpretação no sentido de que o delegado de polícia, a depender do caso concreto, quando houver indícios da presença dos pressupostos da prisão preventiva nos crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, deixar de arbitrar fiança ao flagranteado, sob a ótica de um viés protetor da mulher, hipossuficiente legal, em conformidade com o artigo 324, I do Codex Processual Penal.

Assim, da mesma forma que a prisão em flagrante é comunicada ao Juiz de Direito para que adote as providências cabíveis, o não arbitramento da fiança fundamentado na presença dos requisitos da prisão preventiva também o é, cabendo, então, a decisão final sobre a liberdade do flagranteado agressor ao magistrado, que o poderá fazê-lo, inclusive, na própria audiência de custódia, que se deve realizar nas 24 horas seguintes da comunicação da prisão em flagrante delito.

 

 

Referências:

BRASIL. Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 13 out.1941.

BRASIL. Lei n.º 9.296, de 24 de julho de 1996. Regulamenta o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal. Diário Oficial da União, Brasília, 25 jul.1996.

BRASIL. Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 8ago.2006.

BRASIL. Lei n.º 12.830, de 20 de junho de 2013. Dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia. Diário Oficial da União, Brasília, 21jun.2013.

BRASIL. Lei n.º 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei no 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 5ago.2013.

BRASIL. Lei n.º 11.343, de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 ago.2006.

GARCEZ, William. O delegado de polícia como garantidor de direitos: Um mandamento implícito do Estado Democrático (parte 1). 2016. Disponível em: <https://delegadowilliamgarcez.jusbrasil.com.br/artigos/333662213/o-delegado-de-policia-como-garantidor-de-direitos>. Acesso em: 08 jul. 2018.

JOUTI, Augusto Yuzo. Fiança policial na Lei Maria da Penha: possibilidade. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/39606/fianca-policial-na-lei-maria-da-penha-possibilidade>. Acesso em: 09 jul. 2018.

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LIMA, Renato Brasileiro de. Código de Processo Penal Comentado. 2ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. 1936 p.

LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação especial comentada. 6ª. ed. Salvador: Juspodivm, 2018. 1264 p. v. único.

SIQUEIRA, Rafael. A fiança pode ser arbitrada pelo delegado de polícia nos crimes que envolvam violência doméstica e familiar contra a mulher?. Disponível em: <https://rafaelsiqueira7902.jusbrasil.com.br/artigos/392991893/a-fianca-pode-ser-arbitrada-pelo-delegado-de-policia-nos-crimes-que-envolvam-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher?ref=topic_feed>. Acesso em: 08 jul. 2018.

 

 


1 Delegada de Polícia do Departamento de Polícia Civil do Estado do Paraná.

2II - nos crimes de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, terrorismo e nos definidos como crimes hediondos;
III - nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático;

3Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
I - aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os arts. 327 e 328 deste Código; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
II - em caso de prisão civil ou militar; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
III - (revogado); (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011). (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

4 Art. 324. Não será, igualmente, concedida fiança: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
IV - quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva (art. 312). (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

5Art. 2o As funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

6 Lei 12.850/2013.
Art. 4o O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:[...]
§ 2o Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).[...]
§ 6o O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.[...]
§ 9o Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações.
Art. 6o O termo de acordo da colaboração premiada deverá ser feito por escrito e conter:[...]
II - as condições da proposta do Ministério Público ou do delegado de polícia;[...]
IV - as assinaturas do representante do Ministério Público ou do delegado de polícia, do colaborador e de seu defensor;
Art. 7o O pedido de homologação do acordo será sigilosamente distribuído, contendo apenas informações que não possam identificar o colaborador e o seu objeto.[...]
§ 2o O acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações, assegurando-se ao defensor, no interesse do representado, amplo acesso aos elementos de prova que digam respeito ao exercício do direito de defesa, devidamente precedido de autorização judicial, ressalvados os referentes às diligências em andamento.
Art. 8o Consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou administrativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações.[...]
§ 3o Até o encerramento da diligência, o acesso aos autos será restrito ao juiz, ao Ministério Público e ao delegado de polícia, como forma de garantir o êxito das investigações.
Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.[...]
Art. 11. O requerimento do Ministério Público ou a representação do delegado de polícia para a infiltração de agentes conterão a demonstração da necessidade da medida, o alcance das tarefas dos agentes e, quando possível, os nomes ou apelidos das pessoas investigadas e o local da infiltração.[...]
Art. 15. O delegado de polícia e o Ministério Público terão acesso, independentemente de autorização judicial, apenas aos dados cadastrais do investigado que informem exclusivamente a qualificação pessoal, a filiação e o endereço mantidos pela Justiça Eleitoral, empresas telefônicas, instituições financeiras, provedores de internet e administradoras de cartão de crédito.
Art. 16. As empresas de transporte possibilitarão, pelo prazo de 5 (cinco) anos, acesso direto e permanente do juiz, do Ministério Público ou do delegado de polícia aos bancos de dados de reservas e registro de viagens.

7 Lei 9.296/1996.
Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento:
I - da autoridade policial, na investigação criminal;[...]
Art. 6° Deferido o pedido, a autoridade policial conduzirá os procedimentos de interceptação, dando ciência ao Ministério Público, que poderá acompanhar a sua realização.Art. 7° Para os procedimentos de interceptação de que trata esta Lei, a autoridade policial poderá requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público.

8Lei 11.343/2006.
Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
I - a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes;
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.

9Art. 330. A fiança, que será sempre definitiva, consistirá em depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar.

10 Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
Parágrafo único. A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4o). (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).

11Art. 322. A autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).