DA APLICABILIDADE DAS EXCLUDENTES DE ILICITUDE PELO DELEGADO DE POLÍCIA

MARCOS, Alex Sandro1 

 

 

Resumo:

Apresenta um estudo da doutrina e legislação sobre a possibilidade de afastamento da prisão em flagrante pelo Delegado de Polícia mediante a constatação de quaisquer das causas excludentes de ilicitude, sem que isto configure usurpação à função do Ministério Público ou da Autoridade Judiciária. Constata a capacidade interpretativa do delegado, ao exercer uma função técnico-jurídica, bem como, a análise do crime como fato único, visto que sua visão analítica ou fatiada, se presta apenas para o ensino didático, não palpável no mundo fático.

Palavras-Chave: Excludentes de Ilicitude, Delegado de Polícia .

 

APPLICABILITY OF ILLICITUDE EXCLUDENTS BY THE POLICE CHIEF

Summary:

It presents a study of the doctrine and legislation on the possibility of detention in the act by the Police Chief in the act upon finding any of the exclusionary causes of illegality, without this constituting usurpation to the function of the Public Prosecution Service or the Judicial Authority. It notes the delegate's interpretative capacity in performing a technical-legal function, as well as the analysis of crime as a unique fact, since his analytical or sliced ​​view is only for didactic teaching, not palpable in the factual world.

Keywords: Exclusion Offenders, Police Chief.

 

 

 

Introdução:

Não há como negar a atribuição do Delegado de Polícia para classificação da infração penal, seja no caso do Registro de Ocorrência para eventual abertura de inquérito, seja na lavratura de um Termo Circunstanciado de Infração Penal, ou ainda na hipótese da prisão em flagrante. Não obstante, não há consenso na doutrina e na jurisprudência quanto aos “limites deste poder”: há quem restrinja esta tarefa interpretativa ao juízo objetivo de tipicidade; outros aceitam que se faça o exame completo da tipicidade (formal, material, subjetiva); e, por fim, há aqueles que admitem a plena liberdade interpretativa.

Para o deslinde da questão, far-se-á uma breve incursão na teoria do delito, analisando o conceito analítico de crime, e os elementos que o compõe (tipicidade, ilicitude e culpabilidade), a fim de tentar compreender o poder do Delegado de Polícia na aplicação das excludentes de ilicitude quando da classificação das infrações penais.

Outrossim, o texto do artigo 301 parágrafo único do Código de Processo Penal também será objeto de análise, não podendo ser interpretado em sua literalidade, a fim de extrair dele norma que vede à autoridade policial o reconhecimento das causas justificantes.

 

1. Breve Análise da Teoria do Crime:

A maioria dos doutrinadores, a partir do conceito analítico de crime, decompõe o delito em elementos, definindo-o como ação ou omissão típica, antijurídica e culpável.

O tipo é composto de elementos subjetivos e objetivos. A parte subjetiva inclui o dolo (consciência e vontade de realizar o tipo objetivo) e elementos subjetivos especiais do tipo (intenções, tendências ou motivações especiais). Ao tipo objetivo, normalmente, cabe indicar o sujeito passivo, a ação, o meio e o modo de execução, o resultado, o nexo causal, o objeto material, as circunstâncias de tempo e lugar, os elementos normativos de valoração jurídica (cheque, documentos) ou de valoração extrajurídica (ato obsceno, perigo mortal, dignidade, decoro), etc.

A tipicidade, primeiro elemento do conceito analítico de crime, é a adequação de um fato concreto à descrição que desse fato se faz na lei (tipo). É indiciária da ilicitude (ratio cognoscendi), ou seja, toda conduta típica provavelmente será ilícita, salvo se presente uma causa de justificação.

Isto porque, há situações em que a prática de um fato típico, em regra ilícito, acaba sendo permitida pela legislação, que cria tipos permissivos, denominados causas de justificação. Conforme art. 23 do Código Penal,não haverá crime, ante a ausência de antijuridicidade (seu segundo elemento), quando o agente praticar o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.

O terceiro e último elemento do conceito analítico de crime é a culpabilidade, o juízo de reprovação que incide sobre o autor do fato, com base na capacidade e na formação de vontade, que tem como pressuposto a imputabilidade, o potencial conhecimento do ilícito e a exigibilidade de conduta diversa2.

 

 

2. Da atividade interpretativa a ser realizada pelo delegado de polícia:

Considerando o descrito anteriormente, para verificar se um fato é ou não infração penal, o delegado realiza uma operação intelectual, percorrendo necessariamente todos os elementos que integram o conceito do delito, para somente ao final certificar-se da ocorrência do crime.

Assim, por uma questão lógica, não se inicia uma investigação criminal sem uma opinião sobre a existência de uma infração penal, ainda que de forma provisória.

Portanto, a atividade do delegado não se confunde com uma mera constatação, mas é um verdadeiro “juízo preliminar” exercido através de um complexo ato valorativo-interpretativo que envolve aspectos legais e político-criminais, agora também confirmado pelo art. 2º da Lei 12.830/2013.

Neste sentido, resta inconteste a atividade interpretativa exercida pelo Delegado de Polícia.

 

 

3. Da situação de flagrante delito:

Verificada que a conduta é, em tese, formal e materialmente típica (plano abstrato), antes ou durante a lavratura do auto de prisão em flagrante, o Delegado de Polícia deve examinar se há elementos informativos mínimos (indícios e presunções) de que o fato realmente existiu no mundo real (plano concreto), de que o conduzido é o seu autor (materialidade e autoria do delito) e de que a situação é de flagrância (art. 302 do Código de Processo Penal). Para atingir este convencimento, o delegado deverá proceder a uma análise de todo o material fático-probatório, devendo fazê-lo de acordo com sua consciência e decidindo motivadamente3.

A prisão em flagrante delito é uma espécie de prisão cautelar. Assim, tem como fundamentos: evitar a fuga do autor do fato; resguardar a sociedade, dando-lhe confiança na lei; servir de exemplo para aqueles que desafiam a ordem jurídica e acautelar provas que, eventualmente, serão colhidas no curso do inquérito policial ou na instrução criminal, quer quanto à materialidade, quer quanto à autoria. Portanto, sua natureza jurídica é de uma medida cautelar de autodefesa social4.

Em determinadas situações, deixa-se de lavrar o auto de prisão em flagrante ou de ratificar a prisão em flagrante, não por inexistência de crime ou estado de flagrância, tão pouco por tratar-se de inocência comprovada do conduzido, mas porque a análise do material fático-probatório não induz com segurança a esta opção, vislumbrando-se outras alternativas plausíveis no contexto fático5.

Desse modo, mediante uma avaliação axiológica dos elementos informativos, caso se possa concluir pela insuficiência ou fragilidade indiciária, a restrição da liberdade da prisão em flagrante pode e deve ser evitada.

Neste sentido, questiona-se a possibilidade do Delegado de Polícia, diante de uma cognição coercitiva, poder deixar de ratificar a prisão em flagrante.

Defendemos a existência de discricionariedade por parte do delegado, na escolha de qual providência a ser adotada, sem que isto constitua violação aos princípios da oficiosidade e da obrigatoriedade na ratificação da prisão. Isto porque, a restrição da liberdade não é um ato automático.

A autoridade policial, sendo autoridade administrativa, possui discricionariedade para decidir acerca da lavratura ou não do auto de prisão em flagrante. Sempre considerando que, nesta fase, vigora o princípio in dubio pro societate, e que qualquer juízo exculpatório se reveste de arrematada excepcionalidade, o Delegado de Polícia pode recusar-se a ratificar a voz de prisão emitida anteriormente pelo condutor, deixando de proceder a formalização do flagrante e, com isso, liberando imediatamente o apresentado6.

 

 

4. Da aplicação das excludentes de ilicitude:

Em razão da redação do art. 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, estabelecendo caber ao Juízo reconhecimento das excludentes de ilicitude, tem-se afirmado que somente à autoridade judiciária caberia a análise da presença de discriminantes.

Parcela da doutrina insiste com um pensamento retrógrado quanto à polícia judiciária, no sentido de que o Delegado de Polícia deveria fechar os olhos à existência das excludentes de antijuridicidade, ficando adstrito apenas à tipicidade, estando obrigado a lavrar a prisão em flagrante ainda que a pessoa não tenha praticado crime. Para esses autores, a autoridade de polícia judiciária desenvolveria uma atividade mecânica, estando desautorizada a analisar todos os substratos do delito, consistindo o suspeito em mero objeto, adquirindo a condição de sujeito apenas na fase processual. Olvidam-se que um minuto de prisão indevida é uma infinidade para o injustamente segregado7.

Todavia, importante ressaltar que tal norma não foi redigida com os olhos voltados para o finalismo8, que traz o dolo e a culpa para a própria figura típica, fato este que não se verificava no causalismo, presente no Código Penal quando da elaboração do Código de Processo Penal de 1941.

Este entendimento também não se coaduna com a Constituição Federal de 1988, fulcrada na garantia dos direitos fundamentais da pessoa humana. Assim, funcionando a antijuridicidade como elemento integrante do conceito estratificado de crime, e fazendo-se a pertinente conjugação e interpretação sistêmica dos artigos 5º, inciso LXI da CRFB/88, 4º, 301 e 302, todos do Código de Processo Penal, sempre fazendo alusão à verificação de existência da infração penal, cuja concepção engloba todos os seus componentes, constatada situação na qual esteja presente uma causa de justificação, não deve subsistir a prisão em flagrante, ainda que seja necessário aferir através do inquérito policial o delineamento dos contornos da situação fática. Tal pressuposto trabalha com uma interpretação na qual a filtragem constitucional do artigo 310 do Código de Processo Penal, em consonância com o art. 1º, III, da CRFB/88 permitirão que o Delegado de Polícia, convicto da presença de uma causa de justificação, impeça agressão aos postulados constitucionais, mais precisamente o da dignidade da pessoa humana9.

Portanto, se a observância dos direitos humanos induz como regra o respeito à liberdade da pessoa, a privação desta somente se justifica diante de uma situação de flagrante delito.

Neste sentido, a partir de uma análise técnico-jurídica do fato, se o Delegado de Polícia ficar convencido de que o conduzido, apesar de cometer um fato típico, se encontra amparado por uma causa justificante, deverá deixar de ratificar a prisão em flagrante, fundamentando sua decisão e determinando a soltura do conduzido, consoante art. 304, §1º do Código de Processo Penal.

Conforme balizada doutrina:

“(...) as autoridades policiais devem avançar um pouco mais sobre tais perspectivas, quando se tratar de excludentes manifestas. Parece-nos impensável, por exemplo, que s leve ao cárcere aquele que tenha disparado contra a pessoa que invadira sua residência, com propósitos evidentes de furto ou de roubo, colocando em risco os moradores. Nesses casos, de manifesta legítima defesa, deve a autoridade policial colher imediatamente os elementos informativos disponíveis (testemunhas, declaração dos envolvidos diretamente nos fatos, apreensão da arma etc.), dando início, portanto, às investigações. A prisão, contudo, não deve ser realizada, diante da evidência da impunibilidade do fato” 10.

 

Trata-se de medida legal, decorrente da atividade interpretativa do Direito atribuída ao Delegado de Polícia (art. 4º do Código de Processo Penal), em virtude da ausência de um dos elementos do crime, sem o qual não se admite a prisão de qualquer pessoa.

Com isso, não se quer aqui dizer que o Delegado de Polícia possa usurpar funções do órgão titular da ação penal, ou sobretudo do Poder Judiciário, pois de qualquer forma, ante a uma causa excludente de ilicitude que, a depender da teoria analítica do crime, a que já nos referimos, pode mesmo o fato sequer constituir crime, não deixará o Delegado de Polícia de instaurar o inquérito policial, para apurar os fatos amiúde. Não se prega essa possibilidade. Mas sim que ele deixe de realizar a medida extrema, a prisão em flagrante, o que representa grande risco à liberdade de um inocente.

Mas e a interpretação do artigo 310 § único do Código de Processo Penal? Vejamos que o fato da liberdade provisória obrigatória estipulada ao Juiz, por essa determinação deste artigo, como uma obrigação legal (liberdade provisória desvinculada), nada tem a ver com um absurdo e inexistente dever “automatizado” e “injusto” do Delegado de Polícia de prender alguém nesta situação11.

Portanto, mais do que um poder da autoridade de polícia judiciária, o reconhecimento de causa excludente de ilicitude é um dever no desempenho de sua missão de garantir direitos fundamentais. Isto porque, encarcerar alguém, deixando de analisar a relação de antagonismo de sua conduta com o ordenamento jurídico (ilicitude) ou mesmo a reprovação de seu comportamento (culpabilidade), fere a concepção moderna e democrática do sistema processual penal “12.

Tem-se notícia de muitos casos em que os órgãos de controle da atividade policial, especialmente o externo, ameaçaram e até mesmo responsabilizaram Delegados de Polícia que, ainda que fundamentadamente, não lavraram flagrantes.

De fato, especialmente no tocante à atuação da autoridade policial, são correntes as notícias de inconformismo acerca de eventuais posturas mais liberais, como se deu com o Delegado da Polícia Civil do Estado de São Paulo que perdeu seu cargo numa ação de improbidade administrativa por ter capitulado a conduta de determinada pessoa como tráfico privilegiado, nos termos do art. 33, § 3º, da Lei nº 11.346/2006, e não na figura do caput, como entendia o membro do Ministério Público13.

Alessandro Tadeo Haggi Andreotti, em sua dissertação de Mestrado, transcreve a seguinte lição de Adriano Marrey:

“Verificadas as circunstâncias em que se desenrolou a tragédia, cabe à autoridade policial considerar que somente quando resulte fundada suspeita da prática de crime, sem o benefício de alguma excludente de ilicitude, é que se justifica o recolhimento do conduzido (CPP, art. 304, §1º). Conforme a expressa Lei penal, não há de cogitar de crime, quando o indiciado tenha agido em legítima defesa (CP, art.23). Acha-se então a autoridade policial adstrita ao dever de relaxar a prisão. Não se pode entender legítima a mantença em prisão de quem agiu em defesa própria, nos estritos termos autorizados pela Lei, sem praticar nenhum crime. Não apenas ao juiz, ao receber a cópia do auto da prisão em flagrante, comunicada imediatamente, antes de 24 horas decorridas, se possível, conforme se depreende do texto do art. 5º, LXII da vigente Constituição Federal – não apenas ao juiz é que compete conceder ao indiciado a liberdade provisória, prevista no CPP, art. 310, ao deparar com elementos (contidos no próprio auto de prisão em flagrante), convincentes de não haver o réu praticado crime, pois, se acha beneficiado por uma das causas legais de exclusão de ilicitude (CP, art. 23, II). Igualmente, a autoridade policial, na conformidade do já mencionado § 1º do art. 304 da Lei processual penal, não poderá admitir contra o acusado, fundada suspeita da prática de crime, quando resulte do próprio auto de prisão em flagrante, e dos dados probatório desde logo obtidos, que o indiciado agiu em legítima defesa”14.

 

Portanto, a autoridade policial exerce poder decisório sobre os contornos da responsabilidade criminal. +O Delegado de Polícia assume especial importância, como primeiro filtro jurídico sobre o ato de detenção, decidindo pela ratificação ou não da voz de prisão e, ainda na primeira hipótese, arbitrar fiança nos limites estabelecidos no Código de Processo Penal. Não se tem aqui uma mera operação de enquadramento da conduta em tipo penal, como ocorria no sistema causal-naturalista, mas de um exercício jurídico que deve levar em conta a moderna teoria do delito, avaliando-se também os elementos subjetivos do crime. Tem o Delegado de Polícia, como carreira jurídica, o dever de interpretar o Código de Processo Penal à luz dos princípios informados na Carta Magna, afastando-se, portanto, das matrizes autoritárias que conformaram a legislação processual penal, para colocar a polícia judiciária a serviço do cidadão, como se pode esperar de um Estado democrático de Direito “15.

Ora, se o crime é definido como sendo um fato típico, antijurídico e culpável, óbvio é que aquilo que se pratica sob a égide das excludentes de antijuridicidade crime não é.

Partindo da premissa de que na atual sistemática processual o flagrante não mais prende por si só, devendo ser convertido em prisão preventiva nos termos do art. 312 do Código de Processo Penal, a preventiva pode ser decretada quando houver prova da existência do crime. Em se tratando de hipótese de ato cometido numa das espécies excludentes de ilicitude, não haverá crime, o que afasta a prisão preventiva. Em outras palavras, numa leitura constitucional do Código de Processo Penal, com os olhos voltados para o finalismo adotado pelo Código Penal após a reforma de 1984, será vedado ao juiz decretar a prisão preventiva nas hipóteses de incidência das excludentes de ilicitude. Isso considerado, o que justificaria a determinação, pela autoridade policial, da detenção em flagrante? Porque a autoridade policial não pode reconhecer essas circunstâncias? Porque determinar o encarceramento até que a autoridade judiciária se manifeste a respeito das questões?

O Delegado de Polícia não é um autômato, não é um burocrata com uma arma na cintura. Pelo contrário. A legislação exige que seja bacharel em Direito aprovado em concurso de provas e títulos, o que não seria necessário se sua função fosse meramente chancelar a captura de eventuais suspeitos trazidos à sua autoridade.

Nesse contexto, ao receber na delegacia os supostos desviantes capturados em estado de flagrância, os seus condutores e talvez até a vítima, compete à autoridade policial averiguar as circunstâncias em que ocorreram os fatos e, caso se depare com uma excludente de ilicitude evidente, deverá instaurar inquérito, mas não determinar a detenção.

Preleciona balizada doutrina:

“Obviamente, não se defende a liberação irresponsável de criminosos surpreendidos em flagrante à primeira alegação de que agiu amparado por discriminante. [...] Fala-se aqui de justificante ou dirimente escorada em fortes elementos informativos e probatórios, reconhecidos em decisão da polícia judiciária que transforma o juízo de possibilidade em probabilidade [...]. Isto é, para afastar a decretação da prisão em flagrante, a excludente deve ser perceptível ‘primo ictuoculi’, ao primeiro lançar de olhos. Tampouco se incentiva a informalidade: todos os vestígios merecem ser reunidos em inquérito policial e submetidos às comuns formas de controle, seja interno (Corregedoria de Polícia), externo (Ministério Público), judicial ou social”16.

 

Outrossim, impossível se dar crédito á alegação de que, em havendo excludentes, elas seriam posteriormente reconhecidas pelo juiz da causa. O Delegado de Polícia possui atribuição para avaliar o crime como um todo, até porque a divisão analítica (fato típico, antijurídico e culpável) se presta apenas para fins didáticos. O crime se materializa num único ato, não se “FATIA”, no sentido de que primeiro se atinge a materialidade, depois a antijuridicidade e depois a culpa.

Tudo se conecta num único momento, concretizando a prática criminosa. Nenhum leigo veria o cometimento de crime numa morte causada por legítima defesa. E a razão disso é evidente: apenas os juristas são capazes de ver nesta morte um fato típico, ainda que lícito.

Isto porque, a análise dos requisitos do crime insere-se no contexto do juízo de diagnose, especialmente no momento da decisão sobre a custódia flagrancial. Significa dizer que a prisão em flagrante pode e deve ser afastada caso o delegado de polícia colha elementos robustos que evidenciem a existência de justificativa ou dirimente. Afinal, o inquérito policial deve demonstrar não apenas a tipicidade, mas também a ilicitude e a culpabilidade17.

Entender de modo diverso equivaleria a forçar a autoridade policial a prender em flagrante o policial que se defende do criminoso armado (legítima defesa), o médico que faz cirurgia emergencial para salvar a vida do paciente (estado de necessidade), o oficial de Justiça que cumpre mandado de penhora domiciliar (estrito cumprimento do dever legal), o pai que corrige o filho moderadamente (exercício regular de direito), o adolescente que pratica ato infracional (inimputabilidade), e aquele que age sob coação moral irresistível ou obediência hierárquica (inexigibilidade de conduta diversa) ou sob erro de proibição inevitável (ausência de potencial consciência da ilicitude).

O reconhecimento das excludentes de ilicitude se torna assim, no Estado Democrático de Direito, uma obrigação da autoridade policial. Encarcerar alguém, deixando de analisar a relação de antagonismo de sua conduta com o ordenamento jurídico (ilicitude) ou mesmo a reprovação de seu comportamento (culpabilidade) fere a concepção moderna e democrática do sistema processual penal18.

Na dúvida acerca da configuração de uma excludente, pensamos que o delegado deve optar pela liberdade, na medida em que ela é a regra no ordenamento jurídico. Obviamente, nada impede que, se ao longo da investigação penal surgirem elementos que afastem a excludente, o delegado represente pela prisão preventiva.

A existência de mecanismos de controle a posteriori se mostra, então, essencial, à medida que submete a decisão da autoridade policial a outras autoridades. O membro do Ministério Público a quem os fatos forem comunicados pode, inclusive, discordar do juízo efetuado pela autoridade policial e, assim, representar por prisão preventiva, se for o caso. O que não se pode admitir é que os Delegados de Polícia sejam constrangidos a, contrariando a sua avaliação jurídica do caso, determinar a detenção daquele que foi capturado em flagrante de atividade que não constitua crime, por não ferir minimamente o bem jurídico protegido.

 

 

Considerações Finais:

Não há dúvidas de que o Delegado de Polícia exerce verdadeiro poder decisório sobre os contornos da responsabilidade criminal, e para isso, após o processo de redemocratização, se tornou mais do que ultrapassada a ideia estanque de separação de poderes, que não se confunde com a divisão de funções do Estado.

No auto de prisão em flagrante, no exercício da função jurídica e exclusiva de Estado, o Delegado de Polícia se torna o único a poder realizar um juízo axiológico sobre os fatos e formar seu livre convencimento sobre a providência e regra jurídica aplicável ao caso.

Não há nenhum óbice hermenêutico em se efetivar uma interpretação sistêmica do art. 310, § único do Código de Processo Penal.

Neste aspecto, a norma inserida na Lei 12.830/13, por lhe ser posterior, possui importância ímpar ao atribuir expressamente a atividade jurídico-interpretativa ao Delegado de Polícia, que, de acordo com seu posicionamento, pode deixar de convalidar uma prisão-captura, por entender aplicável ao caso uma excludente de ilicitude.

Enfim, possui discricionariedade (não arbítrio), para analisar questões penais e processuais e, ainda que precariamente, decidir pela opção jurídica que entenda proporcional e razoável19.

Afastar inicialmente a aplicação da prisão em flagrante não significa a certeza da impunidade através de eventual arquivamento do feito ou da não-apuração e comprovação dos fatos da maneira como ocorreram20.

O Enunciado nº 11 do 1º Congresso Jurídico dos Delegados da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, corrobora com tal entendimento ao afirmar que “o Delegado de Polícia, no exame fático-jurídico do estado flagrancial, pode, mediante decisão fundamentada, afastar a lavratura do auto de prisão em flagrante, diante do reconhecimento de causa excludente de ilicitude, sem prejuízo de eventual controle externo”.

É conclusão inarredável, portanto, que inexiste qualquer restrição da legislação no sentido de que o Delegado de Polícia discricionariamente interprete e aplique o Direito, desde que a sua opção tenha relevância jurídica e guarde relação com os postulados da CRFB/88, tratando-se de verdadeiro exercício regular do direito de suas atribuições constitucionais.

 

 

Referências:

ANDREOTTI, Alessandro TadeoHaggi. Reconhecimento das excludentes de antijuridicidade pela autoridade policial no auto de prisão em flagrante delito. Orientadora: Profa. Dra. Samyra H. Dal Farras Naspolini Sanches. Araçatuba: 2008. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077090.pdf> consultado em 07/07/2018.

CAMPOS, Fábio Henrique Fernandez de. O Delegado de Polícia Frente à Constatação de uma Excludente de Ilicitude durante o Auto de Prisão em Flagrante. Novas discussões sob a ótica da Lei 12403/11. InTemas processuais penais da atualidade: doutrina e prática, a visão do delegado de polícia. Organização Clayton da Silva Bezerra, Giovani Celso Agnoletto. São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 323.

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1 Delegado da Polícia Civil do Estado do Paraná.

2SILVA, Paulo Cezar da.O Controle da Tipicidade Material e das Causas Excludentes de Ilicitude pelo Delegado de Polícia. Revista Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná. Curitiba: Juruá, 2017, p. 147/151.

3SILVA, Paulo Cezar da.O Controle da Tipicidade Material e das Causas Excludentes de Ilicitude pelo Delegado de Polícia. Revista Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná. Curitiba: Juruá, 2017, p. 153/154.

4 RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 761.

5SILVA, Paulo Cezar da.O Controle da Tipicidade Material e das Causas Excludentes de Ilicitude pelo Delegado de Polícia. Revista Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná. Curitiba: Juruá, 2017, p. 155.

6 CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 23ª ed., São Paulo, Saraiva, 2016, p. 237.

7 Henriquein HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. P. 68.

8 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. Vol. I. 15ª ed. Niterói: Impetus, 2013, p. 328.

9FERREIRA, Wilson Luiz Palermo. As alternativas processuais penais ao alcance do Delegado de Polícia diante da não configuração de um ou mais elementos do crime: aspectos pontuais. InTemas processuais penais da atualidade: doutrina e prática, a visão do delegado de polícia. Organização Clayton da Silva Bezerra, Giovani Celso Agnoletto. São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 363.

10 PACELLI, Eugênio. FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 8ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 266.

11CAMPOS, Fábio Henrique Fernandez de. O Delegado de Polícia Frente à Constatação de uma Excludente de Ilicitude durante o Auto de Prisão em Flagrante. Novas discussões sob a ótica da Lei 12403/11. InTemas processuais penais da atualidade: doutrina e prática, a visão do delegado de polícia. Organização Clayton da Silva Bezerra, Giovani Celso Agnoletto. São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 323.

12HOFFMANN, Henrique. Aplicação de Excludentes de Ilicitude e Culpabilidade pelo Delegado. InHOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p.71.

13 Confira-se, a respeito, a notícia veiculada em https://www.conjur.com.br/2017-jul-10/delegado-perde-cargo-registrar-ocorrencia-contrariando-logica.

14 ANDREOTTI, Alessandro TadeoHaggi. Reconhecimento das excludentes de antijuridicidade pela autoridadepolicial no auto de prisão em flagrante delito. Dissertação.Orientadora: Profa. Dra. SamyraHaydêe Dal Farras Naspolini Sanches. Araçatuba, SP, 2008. Disponível emhttp://www.dominiopublico.gov.br/download/teste/arqs/cp077090.pdf, consultado em 07/07/2018,pág101

15VON DÖLLINGER, Félix Magno. Da Fiança Arbitrada pela Autoridade Policial durante a lavratura do Auto de Prisão em Flagrante. InTemas processuais penais da atualidade: doutrina e prática, a visão do delegado de polícia. Organização Clayton da Silva Bezerra, Giovani Celso Agnoletto. São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 163.

16HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. P.69.

17HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. P.67.

18 HOFFMANN, Henrique; MACHADO, Leonardo Marcondes; ANSELMO, Márcio Adriano; BARBOSA, Ruchester Marreiros. Polícia Judiciária no Estado de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. P. 71.

19SILVA, Paulo Cezar da.O Controle da Tipicidade Material e das Causas Excludentes de Ilicitude pelo Delegado de Polícia. Revista Jurídica da Associação dos Delegados de Polícia do Paraná. Curitiba: Juruá, 2017, p. 147/151.

20FERREIRA, Wilson Luiz Palermo. As alternativas processuais penais ao alcance do Delegado de Polícia diante da não configuração de um ou mais elementos do crime: aspectos pontuais. InTemas processuais penais da atualidade: doutrina e prática, a visão do delegado de polícia. Organização Clayton da Silva Bezerra, Giovani Celso Agnoletto. São Paulo: Letras Jurídicas, 2016, p. 363.