A COLABORAÇÃO PREMIADA PROPOSTA PELA AUTORIDADE POLICIAL: CONSONÂNCIA CONSTITUCIONAL E ASPECTOS LEGAIS

GARCIA, André Luís1 

Resumo:

O presente estudo tem como objetivo evidenciar a absoluta consonância entre os dispositivos da Lei 12.850/13 que disciplinam matérias penais e processuais afetas ao instituto da colaboração premiada e os preceitos inerentes à matéria insculpidos na Constituição Federal de 1988. Em específico, aborda a divergência doutrinária surgida na análise da possibilidade de ser feita a proposta de colaboração premiada pelo delegado de polícia na fase de investigação. Evocando a ordem jurídica supra constitucional, expressa no item 5 do artigo 7º da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de são José da Costa Rica), a literalidade do §4º do art. 144 da Carta Constitucional e a inteligência do conjunto de normas processuais em vigor que legam à figura do delegado de polícia a dicotômica incumbência de conduzir as investigações criminais e as funções de poração premiada levada a efeito a partir da proposta de acordo manejada pela autoridade de polícia judiciária durante as investigações.

Palavras-chave: Colaboração premiada; Fase de inquérito policial; Proposta de acordo feita pelo delegado de polícia judiciária; Validade constitucional.

 

PRIZE COLLABORATION PROPOSED BY POLICE AUTHORITY: CONSTITUTIONAL CONSONCIATION AND LEGAL ASPECTS

 

Abstrat:

The present study aims to highlight the absolute consonance between the provisions of Law 12.850 / 13 that discipline criminal and procedural matters affecting the institute of awarded collaboration and the precepts inherent in the matter inscribed in the Federal Constitution of 1988. Specifically, it addresses doctrinal divergence. emerged in the analysis of the possibility of the proposal of collaboration awarded by the police delegate in the investigation phase. Recalling the supraconstitutional legal order, expressed in item 5 of article 7 of the Inter-American Convention on Human Rights (Covenant of San José de Costa Rica), the literality of §4 of art. 144 of the Constitutional Charter and the intelligence of the set of procedural rules in force that legate to the figure of the police delegate the dichotomous task of conducting criminal investigations and the functions of judicial police, has as its ultimate scope, to base the absolute constitutionality of the award-winning collaboration carried out on the proposed agreement handled by the judicial police authority during the investigations.

Keywords: Awarded collaboration; Police inquiry phase; Proposed agreement made by the police chief of police; Constitutional validity.

 

 

 

Introdução:

A definição temática do presente trabalho se deve, com evidência, à celeuma doutrinária surgida a partir das inovações processuais suscitadas pela Lei 12.850/13 que deu nova roupagem ao ordenamento jurídico pátrio no tocante ao instituto da colaboração premiada, sua operacionalização e suas consequências.

Com efeito, a partir de meados de 2014, o assunto ganha maior relevo em virtude da notória publicidade do plexo de investigações e ações penais que apuram crimes contra ordem econômica e crimes contra o patrimônio público, praticados por agentes políticos, servidores públicos e executivos de grandes empreiteiras que, em tese, concorreram para a reiterada pilhagem de empresas estatais, mormente no setor petrolífero.

De fato, não se olvida que esta operação, casuisticamente chamada “Lava-jato”, fez da colaboração premiada ferramenta comum na busca pela verdade dos acontecimentos, consubstancializando-a em elementos probantes. Registram-se às dezenas as adesões de investigados, réus e até condenados às propostas de colaboração ofertadas por procuradores e delegados federais atuantes no caso, o que, inegavelmente, proporcionou ao “Estado- investigador” lançar olhos sobre a autoria e materialidade de crimes até então cortinados.

É fato, também, que valer-se desta modalidade investigativa está longe de ser, em termos de constitucionalidade, uma prática aceita pela doutrina de forma unânime. Questiona- se se eventual opção legislativa de acolhimento da colaboração premiada como instrumento idôneo a atingir as finalidades do sistema penal pode ser compatibilizada com princípios e garantias constitucionais.

Respeitados doutrinadores repudiam a forma como são feitas as propostas de colaboração, em especial quando o anuente se encontra preso. Para alguns, a delação, nestas condições, se aproxima de uma “tortura legalizada”, e muito faz lembrar as técnicas medievais de interrogatório, como os procedimentos de perquirição adotados no período da Santa Inquisição, no século XVIII.

Há, ainda, aqueles que pugnam pela imoralidade do acordo, vendo no comportamento do colaborador um inescrupuloso ato de deslealdade para com os delatados, não sendo lícito ao Estado premiar um traidor. Nesta senda, o ministério de Rômulo de Andrade Moreira:2

(...) é tremendamente perigoso que o Direito Positivo de um país permita, e mais que isso incentive os indivíduos que nele vivem à prática da traição como meio de se obter um prêmio ou um favor jurídico. (...) Se considerarmos que a norma jurídica de um Estado de Direito é o último reduto de seu povo, (...) é inaceitável que este mesmo regramento jurídico preveja a delação premiada em flagrante incitamento a transgressões de preceitos morais intransigíveis que devem estar, em última análise, embutidos nas regras legais exsurgidas do processo legislativo.

 

Há, contudo, uma considerável parcela da doutrina que vê na colaboração premiada uma necessária e valiosíssima diligência a ser adotada em investigações criminais e instruções penais que apuram crimes cometidos por organizações criminosas. Para estes autores, a1 colaboração encontra justa guarida na Constituição Federal e deve ser aplicada sempre que cabível. Neste sentido, as palavras do professor Guilherme Nucci:3

(...) significa a possibilidade de se reduzir a pena do criminoso que entregar o(s) comparsa(s). É o ‘dedurismo’ oficializado, que, apesar de moralmente criticável, deve ser incentivado em face do aumento contínuo do crime organizado. É um mal necessário, pois trata-se da forma mais eficaz de se quebrar a espinha dorsal das quadrilhas, permitindo que um de seus membros possa se arrepender, entregando a atividade dos demais e proporcionando ao Estado resultados positivos no combate à criminalidade.

 

Consignado, pois, o embate doutrinário acerca da validade ou invalidade jurídica do instituto, mas superado este conflituoso aspecto, busca, o presente trabalho, o estudo mais circunscrito e profícuo sobre pontual questão acerca da operacionalização do acordo de colaboração, ainda no decorrer da fase investigativa da persecução penal. Explicitando: o acordo de colaboração premiada proposto inicialmente pelo delegado de polícia judiciária, endossado pelo representante do Ministério Público e homologado pelo juiz, (como prevê o novel diploma) encontra ressonância com os primados constitucionais do devido processo legal ou, ao contrário, fere a Letra Maior, mitigando indevidamente a exclusividade ministerial sobre a propositura da ação penal?

Não bastasse a controvérsia doutrinária para justificar o mote do presente artigo, a questão ganha ainda maior relevância a partir da impetração da ADI 5.508 pela Procuradoria Geral da República, no último dia 26 de abril. No entendimento da PGR, o artigo 4º, §§ 2º e 6º da lei, que menciona os delegados de polícia, é inconstitucional por violar o sistema acusatório, o devido processo legal e a titularidade exclusiva da ação penal conferida ao Ministério Público. De acordo com a exordial, só o órgão ministerial, como titular da ação penal, “pode transigir” acerca da pretensão de acusar e denunciar. “A polícia não tem essa competência, pela singela razão de não ser titular do direito em causa.”4

Em resposta, entidades representativas dos delegados, em especial a Associação dos Delegados da Polícia Federal, manifestaram-se no sentido de que a cúpula do Ministério Público Federal age impelida mais por razões de índole corporativa do que necessariamente em defesa da Constituição.4 A argumentação em defesa da constitucionalidade da lei, parte do pressuposto que delegados presidem os inquéritos e, portanto, podem e devem lançar mão a todos os meios de produção probatória. Até porque, para a entidade, a delação premiada é meio de obtenção de prova e não prova propriamente dita.

Não é outro, portanto, o desiderato aqui proposto: analisar o tema em todas as suas nuances, traçando o paralelo entre as atribuições constitucionais da autoridade policial, seus respectivos comandos normativos e a compatibilidade com a Lei 12.850/13, especificamente com os dispositivos que cuidam de conferir proeminência à figura do delegado frente à proposta de colaboração premiada, sem, conquanto, resvalar na sacramentada titularidade da ação penal, legada pelo constituinte, indubitavelmente, ao Ministério Público.

 

 

1. Da Perspectiva Histórica do Instituto e sua Positivação Hodierna no Direito Pátrio:

A colaboração premiada, também conhecida como delação benéfica, é uma ferramenta investigativa, legalmente institucionalizada, caracterizada pela integral ou parcial revelação do estratagema de um fato delituoso pretérito e/ou contemporâneo, feita por um ou mais agentes (autores ou partícipes) que, confessando sua atuação, delata o comportamento criminoso dos coagentes de forma materialmente comprovada, no afã de ser responsabilizado penalmente com menor aspereza.

O instituto se consubstancia, então, no binômio verbal colaborar – premiar, donde a voluntária e eficaz colaboração do agente para o satisfatório e fecundo deslinde persecutório, celebrada na presença do delegado ou do representante do Ministério Público, no bojo de investigação criminal ou ação penal e homologada pela autoridade judicial, fará emergir, ao fim do devido processo legal, uma benesse materializada na diminuição, substituição ou extinção da pena.

A delação é, por assim dizer, uma fonte endógena de conhecimento acerca de um evento criminoso, no qual o olhar investigativo do Estado não penetra, mas observa a exposição visceral dos fatos, promovida por seus próprios protagonistas.

É forçoso reconhecer, como já consignado, que há aqueles para os quais o instituto entra em conflito com princípios constitucionais norteadores do devido processo legal ou, até mesmo, para os mais incautos, ofende os pilares da moralidade estatal. Entretanto, a história mostra que a colaboração premiada ganhou relevo em diversos países, em distintos ordenamentos e díspares contextos político-criminais por sua valiosa capacidade de elucidação de crimes perpetrados por organizações criminosas, permitindo ao Estado-juiz estender seu braço punitivo até aqueles que, outrora, se abrigavam à sombra da impunidade. Com efeito, a colaboração premiada não é lança que fere os postulados magnos do estado democrático de direito, ao contrário, é escudo que os protege.

 

 

2. A Colaboração Premiada no Direito Comparado:

Os primeiros registros da delação como fonte cognitiva em julgamentos foram verificados durante a Idade Média, mormente no período da santa Inquisição (século XVlll), onde confissões e delações eram extraídas mediante atrozes, porém, legalizadas formas de tortura. Assenta-se, sem delongas, que este registro presta-se apenas à demarcação histórica, não tratando, em absoluto, de fixar qualquer genealogia jurídica do instituto como hodiernamente concebido.

Contemporaneamente, a delação surge na Europa a partir da década de 1970, em especial na Itália, onde a máfia desafiava governos, poderes e a própria sociedade. Merece grifo, aqui, a conhecida Operazione Mani Pulite ou “Mãos Limpas” que no início da década 90 desestabilizou severamente os grupos mafiosos da época e levou centenas de criminosos à prisão – o que não teria ocorrido sem a colaboração de alguns dos próprios réus que ficaram conhecidos como pentiti.6 Desde então, o instituto passou a ser contemplado e paulatinamente aprimorado na legislação italiana, prevendo uma penalização amenizada para os co autores de crimes como extorsão mediante sequestro, subversão da ordem democrática e sequestro com finalidade terrorista, desde que atendidas às exigências legais. Atualmente, a legislação italiana prevê, em suma, que durante a apuração de crime praticado por uma organização criminosa, em que um dos corréus colabora para diminuir as consequências desse crime, confessando-o, impedindo o cometimento de delitos conexos e apontando elementos de prova, terá a pena diminuída em um terço ou a substituição da prisão perpétua pela reclusão de 15 a 21 anos. Não há, entretanto, a previsão de perdão judicial ou qualquer outra modalidade de extinção da punibilidade como forma de prêmio.7

No direito alemão há previsão legal para a diminuição ou, até mesmo, a extinção da pena para o agente que voluntariamente noticiar fatos relativos a delitos pretéritos ou preste informações idôneas a impedir a prática de crimes futuros praticados por uma organização criminosa. Na conhecida “regulação dos testemunhos”, o poder é discricionário ao juiz, e prêmio pode ser concedido ainda que o resultado não tenha se materializado por circunstâncias alheias à vontade do colaborador.

Na sistemática jurídica-criminal norte-americana, a delação premiada existe como uma forma de apresentar resultados práticos à sociedade, atendendo aos imperativos de segurança pública e de justiça ao mesmo tempo. Neste molde, conhecido como “plea bargaining”, o representante do Ministério Público preside a coleta de provas na fase investigativa e faz a acusação perante o judiciário. Todavia, ao contrário do direito penal germânico e do italiano, nos Estados Unidos, quando surge a possibilidade de delação do acusado, o “parquet” tem total autonomia para negociar e decidir pelo prosseguimento ou não da acusação, sendo despicienda, regra geral, a manifestação judiciária. Tal sistema se funda, em verdade, numa perspectiva eminentemente privada do direito penal, em que há regência do princípio da oportunidade da ação e disponibilidade do conteúdo do processo.

Na Colômbia, a colaboração premiada também ganhou espaço na legislação penal como medida processual voltada para o combate ao tráfico de drogas e as forças paramilitares de extrema esquerda. Lá, o procedimento ficou conhecido como “direito processual de emergência”8, prevendo aos acusados que, de forma espontânea, delatarem os coagentes e fornecerem elementos de convicção eficazes, a concessão de benefícios como a liberdade provisória, a diminuição da pena ou a substituição de pena privativa de liberdade. Além disso, pode haver, também, a inclusão do colaborador no programa especial de proteção às vítimas e testemunhas.

 

 

3. A Previsão do Instituto na Legislação Pátria:

No Brasil, os primeiros registros daquilo que hoje se convencionou chamar de colaboração premiada podem ser verificados nas Ordenações Filipinas (1603-1867), que previa prêmios àqueles que levassem às autoridades o conhecimento sobre fatos relativos ao crime de falsificação de moeda.9

A despeito destes marcos históricos, a colaboração premiada, modernamente engendrada, passou a integrar o ordenamento jurídico com o advento da Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) que, de forma bastante específica em seu art. 7º, incluiu o § 4º ao artigo 159 do Código Penal prevendo redução de um a dois terços na pena do coagente que colaborar com a autoridade para a localização e libertação da vítima mantida em sequestro; além de estipular a mesma margem de redução da pena aos condenados pelo crime de quadrilha ou bando (art. 288 CP) majorado pela prática de crimes hediondos ou equiparados (art. 8º). Sem embargos, tendo em vista o contexto político-social à época da publicação, nota-se nesta edição legislativa uma nítida influência do direito penal italiano, alhures destacado.

Considerando, entretanto, a aplicação restrita dessa inaugural forma de colaboração (só cabível aos crimes hediondos e equiparados) houve, a partir de então, um movimento legislativo proeminente no sentido de estender a aplicação do instituto à apuração de diversos outros delitos, porém, sempre de forma específica e limitada. Seguiram-se, destarte, a previsão legal da delação na apuração dos crimes contra o sistema financeiro (Lei 7.492/90, com redação dada pela Lei 9.080/95); dos crimes contra a ordem tributária (Lei 8.137/90, também alterada pela Lei 9.080/95); de tráfico de drogas (Lei 11.343/06); de lavagem de capitais (Lei 9.613/98, acrescida pela Lei 12.683/12); além da previsão de inclusão do colaborador no programa especial de proteção à testemunha (Lei 9.807/99) e da possibilidade de efetivação do acordo de colaboração quando da aplicação da legislação antitruste nas hipóteses em que o ato caracterizador de infração administrativa se subsumir, simultaneamente, a um tipo penal (art. 87 da Lei 12.529/11).

Repisa-se que em todos estes diplomas a colaboração premiada é destinada à espécie, operável, portanto, de forma pontual (com o devido registro de que na lavagem de capitais, o instituto já alcançava, também, os crimes originários). Assim, era latente a necessidade de um regramento mais amplo e pormenorizado da colaboração enquanto forma de cognição válida, a fim de privilegiar a segurança jurídica na escorreita operacionalização do mecanismo probante.

Atendendo a essa carência, então, foi publicada a Lei 12.850/13 que, além de definir o conceito de organização criminosa e tipificar condutas correlatas (outra questão há tempos demandada), deu maior amplitude à colaboração premiada, estabeleceu-lhe uma ordenada regência procedimental e definiu, inconteste, a competência e a atribuição das autoridades públicas agentes na persecução penal, alegando também ao delegado de polícia a possibilidade de ofertar a proposta de colaboração.

 

 

4. Das atribuições judiciárias do delegado de polícia:

De prima facie, é salutar que fizemos a disposição topográfica funcional da figura do delegado de polícia judiciária na ordem jurídica convencional cosmopolita e, a seguir, o façamos no ordenamento constitucional-legal pátrio.

Assim, preceitua o item 5 do artigo 7º da Convenção Interamericana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica):10

Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. (Grifei)

 

Nota-se, sem dificuldade, que o direito supraconstitucional institui a figura daquela autoridade servidora pública, legalmente autorizada que, mesmo despida da investidura jurisdicional, atua em funções eminentemente judiciais, ainda que de forma anômala e pontual. No ordenamento pátrio, não é outra a autoridade aqui referida senão o delegado de polícia judiciária, quando, calcado nos ditames da ordem pactual e constitucional, decreta ou não, a prisão em flagrante da pessoa conduzida à sua presença. Ou, ainda, quando arbitra a medida cautelar de prestação de fiança, pondo-a em liberdade e assegurando seu comparecimento nos atos persecutórios subsequentes.

Cauto, também, foi o legislador constituinte quando talhou no §4º do artigo 144 da Magna Carta as atribuições e a direção das polícias civis:11

§ 4º Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares.

 

Aqui, merece o registro hermenêutico de que não há despropósito nas palavras constitucionais, não há letra morta no Texto Maior. Se o constituinte não se limitou a atribuir às polícias civis apenas a investigação criminal, optando pela dicotômica incumbência “funções de polícia judiciária” e “apuração das infrações penais”, inequivocamente há distinção entre um e outro encargo.

Infere-se que o conceito de “apuração das infrações penais” não demanda extraordinário exercício do exegeta. Trata, por óbvio, daquelas atividades próprias de investigação e perquirição que buscam o descortinamento de fatos e circunstâncias pretéritos com o fito de colacionar elementos de convicção acerca da materialidade e autoria de um evento que, subsumido à lei, reputa-se delituoso. É a perícia feita no local do crime (corpo delito); o exame médico-legal; a oitiva das testemunhas; a coleta de dados audiovisuais; a análise de registros documentais; a interceptação telefônica; o interrogatório do investigado; enfim, todas aquelas providências preconizadas de forma exemplificativa pelo art. 6º do CPP e por outras leis esparsas.

Distingue-se com clarividência, portanto, daquelas atividades próprias de polícia judiciária, afetas precipuamente à figura do delegado. Como exemplo, têm-se os casos (de diuturna constância) em que uma pessoa detida, em suposta situação de flagrante delito, é levada à presença da autoridade policial, conforme art. 304 e seu §1º:12

Art. 304. Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. (Redação dada pela Lei nº 11.113, de 2005)
§ 1º Resultando das respostas fundada a suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

 

Neste ponto, o mister da autoridade policial (mais do que mera atividade investigativa) muito se aproxima da atuação de uma autoridade judicial, ainda que considerada a precariedade e a reversibilidade de seus atos. Ora, tal como o juiz se manifesta ante um pleito de tutela antecipada ou de concessão de medida cautelar, valendo-se de uma análise de verossimilhança, traduzida no brocardo latino fumus bonni iuris, o delegado assim também o faz quando é instado a aplicar o direito de forma emergencial frente a um evento flagrancial que autorize a prisão sob a perspectiva do fumus comissi delicti.

Espera-se, então, que diante de tão gravosa medida, geradora de consequências tão severas quanto o é a privação da liberdade momentânea, supostamente procedida sob o manto autorizador do estado de flagrante delito, a atuação do Estado deve estar firmada na autoridade daquele que detém o amplo conhecimento do direito, em toda sua magnitude, muito além da simples capacidade de subsunção típica; apto, portanto, a operacionalizar sem permeio a lei penal e processual aplicável à espécie. Neste sentido, bem definiu o Ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello, em voto proferido em sede de habeas corpus, para quem “o delegado de polícia é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça”.13

Assim, guardadas as distinções, é digno questionar: que outra autoridade, em regra, pode/deve decretar a prisão de alguém, senão o delegado, no instante da lavratura do auto de prisão em flagrante, e o juiz a qualquer tempo (prisões cautelares e decorrentes de condenação)? Antes disso, à presença de quem uma pessoa detida deve ser conduzida, senão à do delegado ou juiz? Que outra autoridade pode/deve arbitrar fiança como medida cautelar, senão ambos?

Extrai-se, assim, a distinção entre a tarefa de investigar, feita pelo corpo policial, e as funções de polícia judiciária, estas, exercidas pela autoridade policial. E é justamente dentro deste plexo de atribuições que se insere a capacidade de representação postulatória do delegado acerca de cautelares pessoais e cautelares probatórias diretamente em juízo, sem para tanto, ter necessariamente de se reportar ao representante do Ministério Público que, sem dúvida alguma é o “exclusivo titular da ação”, mas não o é da investigação.

E neste ponto se torna explícito o cerne da problemática ora articulada: malgrado a convicção jurídica de alguns notáveis doutrinadores (maculada ou não por estultícias institucionais), o delegado de polícia judiciária pode e deve conduzir, quando cabível, a proposta de colaboração feita ao investigado e levada a efeito em juízo com a tempestiva manifestação do Ministério Público, sem, no entanto, incorrer em ilegalidades, usurpações ou inconstitucionalidades. Afinal, tal como a interceptação telefônica ou a busca domiciliar, a colaboração premiada não é prova, mas apenas instrumento de produção probatória. Ou seja, os elementos cognitivos colhidos pela autoridade policial a partir das delações feitas pelo colaborador serão elevados ao altiplano de prova, propriamente dita, quando efetivamente posta ante o contraditório e a ampla defesa no seio do devido processo legal. Assim, mesmo ao manejar o acordo de colaboração, o delegado de polícia nada faz, além de subsidiar o autor da ação penal, a defesa e o julgador com informações e dados relativos aos fatos.

Bem assim, o códex adjetivo, em seu art. 13, I, determina que à autoridade policial incumbe “fornecer às autoridades judiciárias as informações necessárias à instrução e julgamento dos processos”:14 Neste ponto, o arguto magistério de Sérgio Pitombo, para quem:15

A polícia, enquanto judiciária, e o inquérito que ela faz, exsurgem administrativos por sua atuação e forma, mas judiciários nos seus fins.

 

 

5. Do acordo de colaboração premiada celebrado pela autoridade policial:

A Lei 12.850/13 abriga uma seção exclusiva para disciplinar a operacionalização da colaboração premiada, definindo seus operadores, estipulando requisitos e positivando os potenciais benefícios (prêmios).

Nota-se que, já no caput do artigo 4º, está estampada de forma taxativa a competência para a concessão do benefício, que repousa, única e exclusivamente, sobre a autoridade judiciária:16

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados:

 

Embora o texto faça referência expressa à figura do juiz, o termo deve ser tomado em sentido amplo, sob a perspectiva de Estado-juiz; porquanto obviamente a incumbência é dada a juízes, desembargadores ou ministros de tribunais, considerando a competência originária para conhecimento e julgamento da ação penal, vindoura ou já em curso.

Oportuno, ainda, salientar que, a despeito da literalidade do artigo que traz a conjunção coordenativa “e” entre os termos “investigação” e “processo criminal”, dando ideia de adição indissociável entre ambos, a mens legis exprime, como se extrai dos dispositivos subsequentes, que a colaboração pode ser firmada durante a fase de investigação ou ao longo da instrução processual. Assim, o agente poderá se valer dos benefícios da lei ainda que tenha manifestada adesão à proposta somente na fase acusatória, quando já findo o inquérito policial.

Digno salientar que, frente ao acordo já celebrado, a atuação jurisdicional ocorre em dois tomos, distintos pela cronologia dos eventos e pela natureza jurídica dos atos. Primeiramente, quando o magistrado homologa o acordo proposto pelo delegado ou membro do Ministério Público, na fase de inquérito ou durante a instrução processual e, neste caso, estamos a tratar do deferimento de uma cautelar probatória, com validade probante sujeita ao contraditório diferido.

Posteriormente, quando atendidas às expectativas celebradas no acordo, concede o prêmio ao final da ação, lavrado em sentença penal condenatória e efetivado, doravante, na fase de execução, traduzido em causa especial de diminuição ou substituição da pena, ou ainda, em causa extintiva da punibilidade, quando houver a concessão do perdão judicial.

Todavia, em respeito ao sistema acusatório sacramentado no ordenamento jurídico- constitucional e ao Princípio da Inércia da Jurisdição, ao juiz não é dado, em absoluto, propor o acordo de colaboração, sequer presenciá-lo ou tomar parte nas negociações. Ao largo de a regra caracterizar uma nefasta imposição limitativa ao magistrado, trata-se, em verdade, de uma garantia de imparcialidade da atuação jurisdicional, mantendo o julgador equidistante dos pólos, sem, no entanto, sonegar a sua função fiscalizadora. Nesta esteira, escreve o professor André Luiz Prieto, em artigo publicado na internet:17

(...) a previsão expressa de que o acordo, de natureza eminentemente extrajudicial, precisa de um controle judicial, que tenha como função a verificação da sua regularidade formal e material, traduz a ideia que assim como acontece com os inquéritos policiais e os que tramitam perante tribunais, o juiz natural deve estar sempre presente, a fim de evitar abusos.

 

Se, portanto, dúvidas não existem quanto à competência para homologação e premiação da colaboração, também não há (ou não deveria haver) quanto à legitimidade da atribuição afeta àqueles que, de acordo com a lei, podem celebrar a proposta.

A despeito de todo malabarismo hermenêutico feito por aqueles que defendem a exclusão da figura da autoridade policial do rol de legitimados à propositura do acordo, fato é que o legislador pautou-se pela coerência constitucional quando, expressa e indubitavelmente, legou a delegados e promotores a possibilidade de manejo dessa valiosa espécie probante. Senão, vejamos novamente com que tamanha clarividência a lei tratou do tema, a partir do dispositivo que inicia a regulamentação do instituto:18

Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: (Grifei).

 

Açodado, o desatento intérprete poderia imaginar que quando a lei se vale do termo “partes” se refere aos distintos polos da ação penal, quais sejam: acusação e defesa; excluindo, portanto, a possibilidade de o delegado de polícia manusear a espécie probatória. De fato, em uma relação processual a noção de “partes” não admite inferências ou subjetividades, de forma que, inequivocamente, a autoridade policial não é parte em processo penal. No entanto, é preciso salientar que, além do Ministério Público, o réu e seu defensor também integram a relação processual e, a julgar pela literalidade do dispositivo, estariam legitimados a pleitear os benefícios. Todavia, não parece aprazível valer-se de impropriedades terminológicas (que eivam um considerável quinhão de toda produção legislativa do país) para, então, extrair a exegese desejada, ainda.

A despeito da sofrível técnica textual, é bastante nítido que, neste ponto, o legislador se referiu à possibilidade de promotor e defesa exigirem perante o juiz, em momento oportuno e tempestivo, o cumprimento do acordo preteritamente celebrado, homologado e com os resultados estipulados já exauridos. Em momento algum quis, o legislador, tratar da fase de proposta da colaboração no mencionado artigo.

Ademais, se recorrêssemos a mesma via interpretativa da estrita literalidade, chegaríamos à conclusão de que em algumas das modalidades de colaboração premiada havidas no ordenamento em vigor, o representante do Ministério Público estaria excluído da fase de propositura do acordo, posto que na redação literal destes dispositivos, não há, ipses litteris, menção ao parquet. Verbi gratia, a lei 7.492/86 (crimes contra a ordem financeira):19

Art. 25 § 2º Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois terços. (Incluído pela Lei nº 9.080, de 19.7.1995). (Grifei)

 

Nota-se que, sob o prisma da obviedade literal, a revelação da trama delituosa só pode ser feita à autoridade policial ou judicial. Entretanto, o cordato operador do direito, liberto de qualquer vaidade ou vício, não se atém à fria letra da lei, mas à sua mens legis. Porquanto, não há alaridos ou bravatas reivindicando o monopólio de delegados sobre o instituto. É demais óbvio que, na apuração de crimes contra o sistema financeiro, a delação pode ser feita diretamente ao membro ministerial, sem que haja ilegalidades ou nulidades. É justo e necessário que seja assim; falha a letra, mas não a lei.

De volta à Lei 12.850/13, tem-se sepultada a intenção daqueles que buscam macular a atuação da autoridade policial frente à possibilidade de colaboração premiada na fase de inquérito, quando se observa o disposto no § 6º do mesmo artigo 4º, in verbis:20

O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.

Não há como sonegar, aqui, que foi propósito do legislador dispor ao delegado de polícia a oportunidade de valer-se das informações prestadas por um dos próprios coagentes, para a elucidação dos crimes perpetrados por organizações criminosas. Incabível refutar a ideia de que a autoridade policial, na condução pragmática da devida investigação, por vezes, tem na delação, única e inadiável chance de alcançar o resultado máxime elencado em lei e produzir o mais satisfatório conjunto de elementos cognitivos sobre a materialidade e autoria do delito, sem que, no entanto, haja qualquer agressão ao estado democrático de direito e seu progênito Princípio do Devido Processo Legal, vez que em quaisquer casos, a lei fixa garantias irrefutáveis ao investigado, em especial, condicionando a validade do acordo à presença atuante do advogado do colaborador. Ademais, consigna-se que a colaboração manejada e representada pelo delegado de polícia carecerá, sempre, da oportuna manifestação do Ministério Público (que é imprescindível, porém, não vinculante).

Além disso, a realidade evidencia que, não raras vezes, os acordos celebrados pelo delegado, no transcorrer de um inquérito policial (forma mais comum e acessível de investigação criminal), ou seja, na alvorada silenciosa da persecução, alcançam resultados muito mais profícuos do que aqueles assinados no crepúsculo ruidoso da ação penal, quando já houve tempo suficiente para tornar nebulosa a colheita de determinadas provas ou para melhor dissimulação de capitais e valores de origem ilícita. Prova disso são os inúmeros acordos de colaboração firmados perante delegados da Polícia Federal, no transcorrer da operação “Lava-jato”, alguns deles, indubitavelmente cruciais para o sucesso das investigações.

 

 

Considerações Finais:

Não obstante todas essas obviedades, há quem se contrapõe a toda e qualquer argumentação jurídica sobre a legitimidade do acordo de colaboração conduzido pela autoridade policial.21 Em regra, os argumentos retóricos se reportam à defesa da exclusiva titularidade do Ministério Público na formação de sua convicção jurídica sobre o suposto evento delitivo e o consequente domínio da ação penal.

De início é preciso deixar assente que a argumentação usada na desqualificação do delegado para exercer tal prerrogativa, via de regra, não guarda pertinência com o cerne da questão. Ou seja, não se discute, em absoluto, a titularidade do direito/dever de ação do Ministério Público. Somente o representante do órgão ministerial é quem detém o dominus litis nas ações de iniciativa pública (consigna-se que dificilmente haverá uma organização criminosa praticante de crimes cuja deflagração da persecução dependa de manifestação do ofendido). Assim, o delegado de polícia, quando lança mão ao acordo de colaboração premiada não está invadindo, por óbvio, essa exclusiva atribuição. Ao contrário, a delação feita na presença da autoridade policial lhe permite atuar de forma muito mais proveitosa ao longo da investigação, de forma a melhor subsidiar o desempenho do patrono da ação na formulação de sua opinio delicti. Ou seja, a colaboração, tal como prevista em lei, se presta tanto à produção cautelar do substrato cognitivo que permite a propositura de ação criminal, quanto à produção do manancial probatório instrutivo do processo. Aliás, essa é uma característica comum entre tantos outros institutos processuais de reprodução da verdade real no transcorrer da persecutio; outrossim, a interceptação telefônica serve tanto à investigação, quanto ao processo; a oitiva de testemunhas é feita tanto pelo delegado durante o inquérito, quanto pelo juiz na instrução; o mandado de busca e apreensão; a quebra dos sigilos fiscal e bancário; o interrogatório do investigado/réu; enfim, pela natureza dos procedimentos e pela singularidade de seus fins, é razoável que tais ferramentas estejam dispostas tanto à investigação criminal, quanto à ação penal. E, como antes mencionado, sabendo que o Ministério Público é o titular da ação, mas não exerce a mesma exclusividade sobre a investigação criminal, é sensato concluir que em todas essas hipóteses, estará o delegado de polícia legitimado a representar diretamente ao poder judiciário pela concessão de tais medidas, sem incorrer em ilegitimidade ou usurpação.

Vislumbra-se, ademais, a sensatez jurídica desse posicionamento quando se tem em mente que, em todas as ocasiões de prestação jurídica cautelar, acima elencadas, o Ministério Público lançará vista ao requerimento feito pelo delegado e, em alguns casos, será intimado da respectiva decisão judicial. Nota-se, mais uma vez, a ressonância havida entre a colaboração premiada e outras modalidades investigativas previstas na legislação processual e postas ao labor inquisitorial ou acusatório.

Corroborando essa carga argumentativa, é preciso trazer à luz do entendimento o fato de que o objeto de “permuta” na colaboração premiada não diz respeito à propositura da ação penal – que continua intangível e indelével sob o domínio do Ministério Público – mas sobre o próprio ius punitionis do Estado. Ao contrário do direito penal norte americano, que prevê a antecipação do prêmio ao colaborador, permitindo ao órgão acusador barganhar acerca da própria propositura da ação, na maioria dos sistemas jurídicos trazidos a estudo, o prêmio ao colaborador é definitivamente concedido ao fim do processo, pois a benesse atinge a pena propriamente dita. No Brasil, a previsão legal da colaboração premiada é levada a efeito exatamente dessa forma, ou seja, os prêmios estipulados são diminuição, substituição ou extinção da pena. Assim, para que haja o cumprimento bilateral do acordo, é preciso que se percorra todo o devido processo legal, culminado em condenação para que, ao final, exsurge uma pena a ser abrandada ou extinta. Seja como for, em hipótese alguma haverá a possibilidade de mitigar a obrigatoriedade e indisponibilidade da ação penal, que continua em mãos ministeriais, independentemente da atuação do delegado no acordo de delação.

Percebe-se, sob toda evidência, que a celebração da colaboração feita pelo delegado em nada fustiga a exclusividade das atribuições do Ministério Público, nem mesmo o vincula aos termos do acordo, pois a manifestação tempestiva do promotor pode ser contrária à homologação judicial. Mais ainda, se o acordo recebe o manto homologatório, ao arrepio do parecer ministerial, põe-se à disposição do parquet uma série de ações impugnativas, como os remédios constitucionais ou, em extremo, a Correição Parcial. Ademais, parece risível considerar a possibilidade de o colaborador e seu defensor insistirem no acordo que, de plano, foi refutado pelo olhar custos legis do Ministério Público.

Assim, não se espera que, nos moldes republicanos, a mera insatisfação ou a irresignação classista com o produto legislativo dê azo a insurgências que banalizam o uso das ferramentas de controle de constitucionalidade. Note-se que o legislador não incluiu a figura do delegado de polícia na possibilidade de efetivação do acordo de colaboração premiada por conta de um desapego aos fundamentos constitucionais ou pela desídia técnica em seu labor legiferante, senão por entender que, de fato, o manejo desta modalidade investigativa está, também, incluso nas funções de polícia judiciária.

Indo além, quis o congressista que a atuação do delegado, mesmo adstrita à fase de inquérito, repercute, mediante tempestiva representação, na sentença proferida ao final da ação penal, vejamos:22

Art. 4º § 2o Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto- Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal).

 

Considerou, o parlamento, que o delegado de polícia, na condução da devida investigação criminal, toma contato com elementos de informação únicos que ao serem futuramente reproduzidos em ação penal e materializados em um conteúdo probante, perderão, inevitavelmente, uma fração de sua carga realista. Ou seja, o calor dos fatos, a lavratura do auto de prisão em flagrante (que ainda queima), a observação in loco dos eventos, a análise dos áudios de interceptação telefônica permitem a formulação empírica da convicção sobre todo o evento delitivo. Destarte, quer a lei que a autoridade policial possa manifestar-se até mesmo em matéria que não lhe é afeta, ou seja, no próprio direito de punir do Estado, sem que, repita-se, haja máculas à titularidade do Ministério Público na propositura da ação.

Outra vez, não se trata de robustecer sobremaneira a figura do delegado de polícia na persecução penal, numa flagrante e inconstitucional invasão de prerrogativas (como querem alguns), mas sim de considerar na sentença uma representação feita por quem, de perto, “viu” crime e criminosos; especificamente, por aquele que, muitas vezes com maior propriedade, pode manifestar-se acerca do grau de efetividade da contribuição acordada.

Ilustrando, tomemos como exemplo hipotético o cenário de um crime de extorsão mediante sequestro, donde o delegado de polícia, em diligências de campo, detém um dos integrantes da organização criminosa que, inconteste, indica a localização da vítima, permitindo-lhe sua salvaguarda e a consequente prisão em flagrante dos demais coautores e partícipes. Oportunamente, quem terá melhores condições de aferir o grau de efetividade da colaboração do agente, senão aquela autoridade que mais de perto participou das diligências e da reprodução dos fatos? A essa questão, respondeu o legislador ao mencionar expressamente a possibilidade de o próprio delegado representar pela concessão do perdão judicial.

Por concluso, a atuação persecutória e jurisdicional do Estado é protagonizada por instituições de igual relevância, cada qual incumbida em seus misteres, como numa engrenagem composta por diversos mecanismos, donde a eficiência de um depende da proeminência de outro. Destarte, pois, articula-se e operacionaliza-se a colaboração premiada que firmada está na tríade presença dos que investigam e propõem o acordo (delegados e promotores); dos que se defendem e colaboram (acusados e seus defensores advogados) e daqueles que julgam e, efetivamente, concedem os benefícios (magistrados).

O Ministério Público, a toda evidência, é grande e valoroso por si só. Mas arvorar-se auto suficiente frente às tarefas de investigar e denunciar (como tem feito implícita e paulatinamente) denota um estranho desapego às normas de índole constitucional que asseveram a indefectível separação dos poderes e uma pretensa sobrepujança às sedimentadas prerrogativas dos delegados de polícia, nitidamente talhadas no conjunto de normas processuais desde há muito vigentes no ordenamento pátrio.

 

 

Referências:

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BRASIL. Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>

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<www.apmp.com.br>. Acesso em 14 jun. 2018.

 


1 Delegado de Polícia da PC-PR.

2 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 440.

3 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Curso Temático de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 440.

4 STF. ADI 5.508 de 26/04/16. Disponível em http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/adi-5508>. Acesso em 03/05/2016.

5 ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração premiada e polícia judiciária: a legitimidade do delegado de polícia. Em < http://www.conjur.com.br/2016-mar-29/academia-policia-colaboracao-premiada-policia- judiciaria-legitimidade-delegado>. Acesso em 04/05/2016.

6 MACEDO,Roberto. Considerações sobre a Operação Mãos Limpas. Em<http://ferreiramacedo.jusbrasil.com.br/artigos/187457337/consideracoes-sobre-a-operacao-mani- pulite-maos-limpas>. Acesso em 20/04/2016.

7 GUIDI, José Alexandre Marson. Delação Premiada no Combate ao Crime Organizado. São Paulo: Lemos de Oliveira, 2006, p. 102.

8 PARANAGUÁ, Rafael Silva Moreira. Origem da deleção premiada e suas influências no ordenamento jurídico brasileiro. http://rafael-paranagua.jusbrasil.com.br/artigos/112140126> Acesso em 01/03/2016

9 Ainda no contexto das Ordenações Filipinas, é mister dar relevo a um movimento histórico-político clássico do Brasil monárquico, que foi a Inconfidência Mineira. Em um episódio destacado, o Coronel Joaquim Silvério dos Reis obteve o perdão de suas dívidas com a Coroa Portuguesa por ter delatado seus colegas, que foram presos e acusados do crime de lesa-majestade (traição cometida contra a figura do monarca). Dentre os denunciados estava Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”, que foi tido como chefe do movimento e, consequentemente, condenado à morte por enforcamento.

10 Convenção Interamericana dos Direitos Humanos. São José da Costa Rica. Disponível em <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos> Acesso em 22/03/16

11 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>

12 BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3689 de 3 de outubro de 1941. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>

13 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 84548/SP. Rel. Ministro Marco Aurélio. Julgado em 21/6/2012.

Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo671.htm

14 BRASIL. Código de Processo Penal. Decreto-Lei nº 3689 de 3 de outubro de 1941. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>.

15 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Arquivamento do Inquérito Policial – Sua Força e Efeito. Inquérito Policial: Novas Tendências. Belém: CEJUP, 1986, p.89.

16 BRASIL. Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>.

17 PRIETO, André luiz. Disponível em < http://ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista> Acesso em 20/04/16

18 BRASIL. Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>

19 BRASIL. Lei 7.492 de 16 de junho de 1986. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7492.htm>

20 BRASIL. Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>

21 Em geral, são membros do Ministério Público que se dedicam à edição de artigos e textos publicados na internet, contendo críticas à Lei 12.850/13 no tocante à possibilidade de o acordo de colaboração ser feito diretamente pela autoridade policial. V.g. o procurador da República Rodrigo de Grandis publicou sua crítica no sítio virtual “Jota”, em 05/05/15. Disponível em <http://jota.uol.com.br/rodrigo-de-grandis-a-inconstitucionalidade-da-participação>

22 BRASIL. Lei 12.850 de 2 de agosto de 2013. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12850.htm>