O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL E O PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO: MUDANÇAS PARADIGMÁTICAS E A SELETIVIDADE

Vyctor Hugo Guaita Grotti1

Marcelo Bordin2

 

 

Resumo: O presente artigo busca analisar a evolução da prisão como pena, bem como a evolução do pensamento criminológico. Concentrar-se-á a abordagem a partir da Teoria da Reação Social acerca do estudo do crime e daquele rotulado como criminoso, demonstrando a sua importância metodológica na análise desse objeto, uma vez que rompeu com paradigmas etiológicos-deterministas. Ainda, busca-se analisar o discurso oficial do Direito Penal e como este se dá na prática através do Sistema de Justiça Criminal através da seletividade.

 

Palavras-chave: Sistema de Justiça Criminal. Pensamento Criminológico. Teoria da Reação Social. Seletividade.

 

Abstract: The present paper aims at analyzing the evolution of the prison sentence, as well as of the criminal thought process. Its approach is based on the so-called "social reaction theory" in relation to the determinants of crime and to those labeled as criminal. The methodological relevance of this theory is put in evidence, once it torn down ethiological-deterministic paradigms. Furthermore, this work aims at parsing into the official speech of the Criminal Law and its practical effects through the Criminal Justice System on selectivity basis.

 

Key-words: Criminal Justice System. Criminological thought. Social reaction theory. Selectivity.

 

 

INTRODUÇÃO

No Brasil há milhares de condutas consideradas criminosas, passando-se da previsão de um homicídio à molestação de cetáceo3, o que demonstra a hipertrofia legislativa em matéria penal no nosso país. O discurso oficial é de que essas leis são necessárias para proteção de bens jurídicos considerados tão relevantes que são merecedores de uma tutela penal, pois aqui a reação se dirige à liberdade do indivíduo. Crê-se que a ameaça de prisão, portanto, será uma instituição responsável por criar um contraestímulo a certas condutas e que ela, caso seja utilizada, “consertará” o indivíduo. Contudo, parece haver algo de errado: mesmo com todo esse aparato, percebemos ainda a criação de novos crimes e que nada parece funcionar. Surge, então, as questões: para que serve a prisão, o direito penal e as suas agências executoras?

Nesse sentido, surge a importância de conhecer brevemente as circunstâncias como a prisão se tornou pena principal, uma vez que essa não era uma característica intrínseca dela, já que somente ficava preso alguém até o término do processo (quando havia), o qual aplicava outro tipo de pena. De igual modo, é importante conhecermos também a história do pensamento criminológico no que concerne ao estudo do crime e daquele que o comete. Isso porque, como veremos, sua abordagem não se deu da mesma forma. Até a Teoria da Reação Social (do labbeling approach ou etiquetamento), partia-se de uma lógica do consenso, sendo aquela teoria uma das responsáveis pela mudança do enfoque: da causa da criminalidade para a sua reação a ela; do consenso ao conflito. Por questões de espaço e escolha, não abordaremos outras teorias, como a radical, que também tem especial relevância para o estudo do tema.

Considerando as abordagens acima referidas, surge outra importante questão: quais são os discursos e as práticas atuais do Direito Penal e do Sistema de Justiça Criminal (SJC)? Esta será objeto do terceiro item deste artigo, no qual desenvolveremos os discursos oficiais (declarados) e aqueles observáveis empiricamente.

Toda essa análise será construída através de uma revisão bibliográfica de autores que se dedicaram para o estudo do tema. Por sua interdisciplinaridade, intrínseca à discussão proposta, abordaremos uma bibliografia da área do direito, da sociologia e da filosofia. Esperamos com isso contribuir para uma reflexão acerca dos papéis de cada instituição vinculada ao SJC.

 

DA PRISÃO E O CRIMINOSO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO CRIMINOLÓGICO

A prisão atualmente é a principal forma de punição à uma pessoa que praticou determinado fato tido como criminoso. No entanto, essa forma punitiva como principal vem dos meados do século XVIII e, no decorrer da sua história, possuía mais um caráter instrumental-processual do que propriamente uma sanção, pois o cárcere era utilizado enquanto uma pessoa aguardava o seu julgamento para aplicar a pena. Pena e cárcere, portanto, nem sempre andaram juntos. Para ilustrar esse ponto, lembramos da primeira passagem do livro “Vigiar e Punir” de Michel Foucault (2014), o qual inicia seu livro citando o caso de Damiens, cujo corpo é destruído em 1757 através de um ritual supliciante. Essa destruição do corpo, na época, era a principal forma de penalidade e assumia uma função de demonstração de poder do soberano aos seus súditos. O suplício, no entanto, desapareceu como principal forma de repressão penal, surgindo em seu lugar as prisões. São nelas, de acordo com Foucault, que o corpo será devidamente disciplinado para propósitos sistêmicos.

A destruição do corpo não se justificava mais diante da escassez de mão-de-obra e a necessidade dela para o movimento industrial que já estava despontando. O preço da força de trabalho certamente aumentaria ante a sua falta e o lucro do capitalista, consequentemente, diminuiria. A disponibilidade da força de trabalho era, assim, proporcional à forma/intensidade da punição: quanto mais abundante, mais cruel; quanto mais escassa, menos cruel (RUSCHE; KIRCHHEIMMER, 2004). A mudança na forma da punição, portanto, está mais relacionada ao modo de produção que despontava com a Revolução Industrial (baseado na lógica capitalista), do que por questões humanitárias propriamente ditas.

A lógica da punição estava relacionada, dessa forma, à submissão da classe trabalhadora aos anseios da burguesia, quais sejam, adaptações ao modelo capitalista de produção. Aqueles que se adequavam, ainda que através do sistema penitenciário, incluíam-se na lógica do capital. Por outro lado, aos sediciosos havia a necessidade de controlá-los através do que Foucault chamou de ilegalismo popular:

Em primeiro lugar, é um ilegalismo “funcional”: em vez de ser um obstáculo, de contribuir para a redução do lucro do capital em via de industrializar-se, possibilitava o surgimento de uma relação de lucro que é própria do capitalismo. Esse lucro não se opunha absolutamente ao lucro comercial, mas à cobrança feudal, tanto à cobrança direta do senhor quanto à cobrança indireta e estatizada. (...)

Em segundo lugar, era um ilegalismo sistemático, por ser quase um modo de funcionamento da sociedade inteira. Tinha-se a junção de ilegalismo popular com ilegalismo dos comerciantes, ilegalismo dos negócios. Tinha-se também, diante disso, o ilegalismo dos privilegiados que escapavam à lei por estatuto, tolerância ou exceção. (...)

Em terceiro lugar, [esse ilegalismo] era ao mesmo tempo econômico e político. Sem dúvida, quando uma lei é evitada, quando se estabelece uma relação de mercado que escapa ao sistema regulamentar, seria possível dizer que nisso nada há de política, que se trata apenas de um jogo de interesses econômicos (2015, 130-133).

 

Os ilegalismos sempre foram tolerados, mas com a consolidação da burguesia no poder, eles agora ameaçavam a sua propriedade e seus interesses, motivo pelo qual todos aqueles que praticavam um ilegalismo era visto como criminoso e construído como inimigo social, reavivando as bases teóricas de criminoso como violador do contrato social, teoria que a própria já havia refutado, mas agora utilizando-a para fins utilitários de sua continuidade no poder e nos meios de controle. Nessa época havia uma espécie de polícia particular, incumbida de cuidar do patrimônio da burguesia, instalando-se assim uma nova moralidade acerca do fato social considerado criminoso.

Com essa breve explanação sobre a mudança da forma de punir, podemos ver que a prisão nem sempre foi a principal pena aplicada, sendo um fato relativamente recente. A prisão se consolida enquanto pena para atender os interesses de uma classe dominante sobre a dominada, fazendo esta se adequar ao modo de produção capitalista. A prisão serviria, portanto, para uma espécie de adestramento ao processo produtivo (FOUCAULT, 2014). Em relação ao estudo do crime e o sujeito que o comete, de igual modo, passou-se por mudanças no decorrer da história do pensamento criminológico.

As teorias que se desenvolveram após a consolidação do crime como entidade moral tiveram suas premissas criadas a partir de uma lógica em que as normas imperativas criminais representavam a defesa de bens essenciais à vida em comunidade. A natureza de tais normas, portanto, tinha caráter ontológico, já que eram vistas como um fenômeno natural, dado pela natureza. A análise da conduta criminosa e do criminoso tinha como premissa essa realidade e as pesquisas que se seguiram tinham como principal pergunta: “por que o criminoso comete crime?”. Tendo esta questão como ponto de partida, podemos perceber uma abordagem causal no fenômeno criminal. Isso significa que as teorias a respeito do crime-criminoso vão se preocupar em explicar o porquê um indivíduo cometeu um crime, sem se preocupar em questionar a própria lei criminal ou mesmo seu processo de criação. Há, sim, um suposto consenso a respeito da legitimidade das leis, como se a sociedade fosse, de fato, baseada em um consenso de todos, os quais teriam idênticos valores a criariam instituições para assegurar o funcionamento regular da comunidade (SHECAIRA, 2012).

Sob essa perspectiva, temos a Escola Clássica e Positivista. A primeira, tendo como um dos seus principais pensadores Cesare Bonesana (Marquês de Beccaria), tinha como base principiológica o contratualismo e a pena era encarada como uma reparação ao contrato violado, uma vez que seu violador tinha o livre-arbítrio para decidir entre agir conforme o contrato ou não. Seu método era lógico-abstrato e o direito penal não era encarado como instrumento para intervir no indivíduo, mas para assegurar existência da própria sociedade, tendo efeito dissuasório (BARATTA, 2017). A Escola Positivista, por outro lado, vai de encontro com a ideia do livre-arbítrio e vai procurar as causas da criminalidade no indivíduo, em um determinismo biológico, utilizando o método indutivo-experimental (empírico). Com Lombroso, por exemplo, sustentava-se ser o delinquente um criminoso nato, ligado a uma herança atávica (LOMBROSO, 2017). Ele não desprezava os fatores exógenos, ou seja, aqueles externos à própria pessoa e que contribuía para a sua conduta. No entanto, encarava esses fatores como desencadeadores dos endógenos, intrínsecos ao indivíduo, sendo estes preponderantes.

As críticas a essa escola criminológica, denominada positivista, são contundentes. Baratta (2017), por exemplo, critica essa forma de abordagem, escorada em buscar as causas da criminalidade, que visa legitimar uma desigualdade ao afirmar que os delinquentes são pessoas diferentes das “normais”, além de ampliar e legitimar o poder punitivo. É justamente da escola positivista, juntamente com a clássica, que nasce a ideologia da defesa social, a qual legitima o Estado para fazer o papel repressivo, considerando o crime como um dano à sociedade e a pena como função preventiva, tendo caráter indeterminado – já que o criminoso precisaria ser confinado até a sua “cura”.

Um novo rompimento metodológico foi feito por Durkheim (2019), o qual considerava a sociedade como um todo orgânico, cujos indivíduos compartilham de valores e objetivos comuns, havendo a necessidade de encontrar mecanismos de autopreservação, sob pena de disfunção. Durheim via o delito como um fenômeno natural nas comunidades, que na verdade contribui para a sua evolução, participando, assim, da sua fisiologia normal. O delito, no entanto, adquiriria um caráter patológico se o sistema de regras de conduta perdesse valor, ferindo a consciência coletiva de uma comunidade. Nesse sentido, a pena seria um instrumento de defesa da sociedade, a qual reforçaria a coesão social (DURKHEIM, 2010)4. Apesar de ter forte influência naturalista e ainda pressupor uma comunidade coesa, que compartilha valores universais, a mudança no enfoque de Durkheim consiste justamente em prever o crime como algo intrínseco a uma determinada comunidade, algo desconsiderado pela escola positivista, tida como anormal.

No mesmo sentido da escola do consenso, fizeram parte as escolas de Chicago, a teoria da subcultura delinquente e da associação diferencial, cada qual analisando o fenômeno criminal sob um ponto de vista, no entanto, adotando como premissa o consenso. Contestando a premissa consensual, a Escola da Reação Social partiu de princípios conflituais para a análise do fenômeno criminoso5.

A Escola da Reação Social (do Labelling Approach ou do etiquetamento – usaremos esses termos como sinônimos) efetuou, por sua vez, uma ruptura metodológica com o pensamento causal acerca do crime e do criminoso, passando a adotar uma nova perspectiva acerca da análise do fenômeno criminal, utilizando-a como base para suas abordagens. Abandonando o paradigma etiológico-determinista, a Escola da Reação Social afirma a preponderância das relações conflitivas em detrimento das consensuais, em que a característica comum dos criminosos não seria as suas respectivas ações, mas sim as reações sociais a ela, ou seja, pela seletividade feita pelas agências do sistema de justiça criminal (SJC)6, que tem caráter constitutivo do delito, já que somente aquela pessoa selecionada pelo sistema penal é que será rotulada como criminosa (ANITUA, 2015).

A Escola da Reação Social tem esse nome justamente porque seu foco está na reação da sociedade quando uma pessoa comete um delito, e não em uma causa do crime. Para essa escola, o fenômeno da criminalização está mais ligado à reação das agências de controle social do que uma qualidade do ato propriamente dita, pois duas pessoas podem praticar idênticas condutas consideradas criminosas, mas somente serão rotulados como tal aqueles apanhados pelo SJC.

A partir disso, inclusive, podemos perceber um grave equívoco metodológico cometido pela Escola Positivista: ao selecionar somente as pessoas que estavam presas para compor sua amostragem, não percebiam que nem todas as pessoas que cometiam crimes estavam, de fato, presas. Isso certamente influenciou nos resultados da pesquisa.

Como dito, se a pergunta principal da Escola Positivista era “por que as pessoas delinquem?”, para a Escola da Reação Social passa a ser “por que algumas pessoas são tratadas como criminosas e outras não?”. Essa mudança é paradigmática porque rompe com o caráter ontológico do crime, demonstrando que, na verdade, sua essência está nos critérios de seleção, tendo em vista que foi desmistificada a questão da igualdade da justiça criminal (tratada no próximo item). Becker (2008), um dos expoentes da teoria do etiquetamento, explica que a conduta desviante, na verdade, é originada pela própria sociedade, resultando a desviação. Quando esta é aplicada, temos uma rotulação. Para ele,

(...) grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, e ao aplicar essas regras a pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi aplicado com sucesso; o comportamento desviante é aquele que as pessoas rotulam como tal (2008, p. 21-22)

 

O desvio, para Becker, não é uma qualidade do próprio comportamento, mas sim o produto de um processo reacionário de pessoas ou instituições. O desvio, assim, é relacional, pois depende necessariamente de uma relação, cujas regras são moldadas e impostas por um grupo dominante ao dominado, independentemente do consentimento deste (BECKER, 2008). O comportamento criminoso vai gerar uma carreira desviante, pois ao ser preso e rotulado como tal, isso vai ter uma consequência na sua identidade pública e em sua autoimagem, o que lhe vai conferir um novo status (BECKER, 2008) e gerando estigma (GOFFMAN, 2019).

Becker não é desatento com a carga de valores intrínsecas às normas que gerarão desvio após a sua aplicação. Para ele, há os criadores de regras e os impositores de regras. Os primeiros são aqueles criadores que julgam “que nada pode estar certo no mundo até que se façam regras para corrigi-lo. Opera com uma ética absoluta; o que vê é total e verdadeiramente mal sem nenhuma qualificação. Qualquer meio é válido para extirpá-lo (BECKER, 2008, p. 153). Os criadores de regras são, portanto, aqueles que travam uma verdadeira cruzada moral, em especial pelo processo de criação de regras. Como produto desse processo, criar-se-á um conjunto de normas, as quais serão impostas pelos impositores de regras, institucionalizando a cruzada, em especial através de uma força policial (BECKER, 2008, p. 160). O policial, normalmente, não estará preocupado com o conteúdo das regras, mas, sim, com a sua existência, pois serão elas as responsáveis por sua atividade laboral.

Howard Becker fez uma revisão da sua teoria posteriormente quanto à teoria da rotulação. No entanto, o grande mérito dela foi justamente perceber os defeitos de uma abordagem causal do estudo do crime, passando de uma perspectiva ontológica-determinista para uma perspectiva da reação social. Com isso, pôs-se em questão todo o arcabouço teórico construído através de tais perspectivas, considerando, por exemplo, o livre arbítrio ou mesmo “causas da criminalidade”. No item seguinte, abordaremos justamente como se construiu o princípio da igualdade nos discursos penais, como ele foi analisado pela Escola da Reação Social e como se manifesta na realidade do Sistema de Justiça Criminal brasileiro.

 

SOBRE O DISCURSO E A PRÁTICA: O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL BRASILEIRO E A SELETIVIDAD

Vimos acima que nem a prisão como pena e nem a visão do crime – e de quem o comete – tiveram uma linearidade analítica durante o decorrer do pensamento criminológico. Pelo contrário. A prisão se tornou pena principal diante de um contexto histórico específico e, em relação ao estudo do crime e daquele que o pratica, houve uma mudança significativa nas suas respectivas abordagens, passando-se de etiológico-determinista para uma consequência da reação social. A teoria do labelling approach, portanto, vai focar justamente na reação social ante a prática por alguém de um fato considerado criminoso, bem como o modo que será trabalhado nessa pessoa o rótulo de “criminoso”. O criminoso, aqui, não é aquele que comete crime, mas na verdade aquele que, ao cometê-lo, foi selecionado pelo SJC através de suas agências, passando pela prisão e adquirindo o mencionado rótulo, o que influencia na sua autoimagem e cria estigmas.

O discurso oficial da teoria jurídica da pena (CIRINO DOS SANTOS, 2017) vai justificá-la como retribuição de culpabilidade, como se com um mal do crime haveria a pena para compensá-la. Ainda, há justificativa para fins de prevenção especial e geral. Na especial, há a positiva, pois visaria corrigir o indivíduo; há também a negativa, que seria a neutralização do indivíduo. Quanto à prevenção geral, haveria também fins negativos, de cunho dissuasório, e positivos, de estabilização institucional. No entanto, esse discurso oficial é criticado por Juarez Cirino dos Santos (CIRINO DOS SANTOS, 2017), o qual apresenta diversas contraposições às crenças depositadas na aplicação da pena pelo direito penal. Em suma, aponta duas teorias principais: a teoria negativa/agnóstica da pena e a teoria materialista/dialética da pena.

Na primeira, há uma descrença nos fins anunciados pela pena, definindo-a como “ato de poder político correspondente ao fundamento jurídico da guerra(idem, p. 434); na segunda, a grosso modo, como instrumento de dominação de classe.

A função declarada da pena, por parte do Direito Penal, parte do pressuposto que ela se aplica de forma igualitária a todos aqueles que cometem um fato considerado como crime, sendo legitimada também por tal razão. No entanto, na prática, o SJC atua de forma discriminatória e seletiva, sendo que nem todos aqueles que cometeram um fato considerado criminoso são punidos. Isso foi demonstrado por Sutherland, no seu livro “Crime de colarinho branco” (2015), o qual mostra que alguns crimes, inclusive mais danosos à sociedade – como é o caso dos de colarinho branco –, não são sequer investigados e seus autores sequer são punidos. De igual modo, Batista (2003) e Zaccone (2007) mostram a diferenciação de tratamento dado pelo SJC brasileiro no que concerne à rotulação das pessoas como traficantes ou usuários, principalmente baseados em aspectos raciais.

O SJC, então, vai atuar de forma seletiva e um grande número de delitos ficarão fora do âmbito da responsabilização criminal – isso quando não fizer parte da cifra oculta da criminalidade, que são os fatos que sequer chegam ao conhecimento do Estado. Em razão dessa característica do SJC, Albrecht apresenta um “modelo de funil” para desenhar como ele se opera de modo formal:

Fonte: ALBRECHT, 2010, p. 251.

 

Através desse esquema, podemos ver que nem todos os comportamentos puníveis são descobertos e, aqueles que são, somente uma parcela é descoberta pela polícia; dessa parcela, poucos crimes são esclarecidos e menos ainda são aqueles processados e condenados. Se compararmos a dimensão do “topo” do funil com o seu “bico”, perceberemos uma diferença significativa, o que demonstra justamente que nem todos que cometem crimes passam pelo SJC ou pela própria prisão. Desse modo, não precisamos ir muito além para concluir que o discurso da igualdade não se demonstra empiricamente.

Vejamos, ainda, o caso do Brasil, que apresenta uma característica interessante na composição de sua população penitenciária, compostas de pessoas oriundas das camadas pobres e de cor preta, conforme segue:

Além da precariedade do sistema carcerário, as políticas de encarceramento e aumento de pena se voltam, via de regra, contra a população negra e pobre. Entre os presos, 61,7% são pretos ou pardos. Vale lembrar que 53,63% da população brasileira têm essa característica. Os brancos, inversamente, são 37,22% dos presos, enquanto são 45,48% na população em geral. E, ainda, de acordo com o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), em 2014, 75% dos encarcerados têm até o ensino fundamental completo, um indicador de baixa renda.7


Outro fator que deixa claro a seletividade do SJC é os dados relacionados aos mortos pelas instituições policiais que, segundo compilação feita pela Rede de Observatórios de Segurança8, demonstram que 75% dos mortos em confrontos são negros, não restando dúvidas de que essa balança pende desproporcionalmente para um lado. Nesse sentido, a lógica atual é a do controle pela seletividade, seja encarcerando pretos e pobres, ou tirando-lhes a vida. A favela se apresenta como principal território para o exercício dessa lógica, o que fez Alves chamar essa relação de The favela-prision pipeline (2018). Como estudiosos desse tema, vale aqui citar também as contribuições de Agamben (2010) a respeito do homo sacer, indivíduo considerado matável; Butler (2018), sobre a precariedade da vida e sobre ela ser ou não passível de luto; e Mbembe (2018), sobre a necropolítica, que é o poder de ditar quem pode morrer e quem pode viver. Isso demonstra que o atual estágio do conhecimento científico e com um sem fim de avanços tecnológicos não estão proporcionando a emancipação do ser humano, muito pelo contrário: insere a humanidade em uma lógica destrutiva, seja uns dos outros, seja do planeta.

Diante disso, nenhuma outra alternativa nos resta a não ser entender a hipertrofia legislativa penal como um suporte legal ao Estado em exercer seu poder em diversos setores da vida social, na sua forma mais difusa possível. Não à toa que Zaffaroni sustenta que “os órgãos legislativos, inflacionando as tipificações, não fazem mais do que aumentar o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador” ( 2001, p. 27).

 

CONCLUSÃO

Trouxemos para debate diversos temas relacionados aos objetos da criminologia. Seria pretensioso acreditar que, em poucas páginas, poderíamos esgotar os debates que giram em torno desses assuntos tão importantes, que estão diretamente relacionados ao Sistema de Justiça Criminal. Não acreditamos nessa possibilidade, por óbvio. No entanto, a nossa intenção foi trazer as discussões em torno da prisão, do crime e do “criminoso”, e como esses temas se relacionam entre eles.

Exploramos um pouco a mudança da função da prisão, que transitou de uma pena processual para principal em razão das mudanças socioeconômicas vividas após o século XVIII. A intenção foi demonstrar justamente que a pena tem seu caráter histórico, não condizente necessariamente com uma questão de justiça, pois pode atender fins “sistêmicos”. Aproveitando essa abordagem, somou-se a esta um breve histórico do pensamento sociológico e criminológico a respeito do crime e do criminoso. De igual modo, a intenção nossa foi demonstrar que seu saber foi sendo construído e, assim como a prisão, não possui um pressuposto de existência ontológico. Por essa razão, foi explorado a mudança do enfoque acerca do crime e do “criminoso” feita pela Teoria da Reação Social, importante escola que contribuiu para a continuidade do debate desses temas, mas sobre novos enfoques: a reação e suas consequências para aquele que pratica um fato considerado criminoso.

Após isso, fizemos uma breve reflexão sobre o discurso oficial do Direito Penal e como, na verdade, ele se dá na prática: o princípio da igualdade é um mito, pois nem todos aqueles que cometem o delito são investigados, processados e condenados. O SJC, através de suas agências, na verdade, atuam de forma discriminatória e seletiva, sendo que a enorme quantidade de crimes criados pelo Poder Legislativo, ao invés de contribuir para a diminuição daquelas condutas indesejadas (dissuasão), na verdade, confere um poder ao Estado de se imiscuir em diversas áreas da vida social, manejando seu aparato repressivo conforme lhe aprouver.

Pensamos que o debate trazido a este artigo trouxe alguns aspectos sobre a “prisão” e o “criminoso” que deverão estar presentes nas discussões não só acadêmicas, mas na própria formação (e continuidade) do policial. Não há como seguirmos com antolhos e enxergarmos esses dois constructos como algo ontológico. Precisamos evoluir nesse debate, que certamente contribuirá com uma atuação mais humana por parte dos policiais.

 

BIBLIOGRAFIA

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ALBRECHT, Peter-Alexis. Criminologia: uma fundamentação para o direito penal. Curitiba: ICPC; Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

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ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2015.

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FOUCAULT, Michel. A sociedade punitiva. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

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MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3ª ed. São Paulo: N-1 edições, 2018.

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ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do Sistema penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

 


1 Mestrando em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Especialista em Direito Penal e Criminologia pelo Instituto de Criminologia e Política Criminal (ICPC). Pesquisador do Centro de Estudos de Segurança Pública e Direitos Humanos (CESPDH) da UFPR.

2 Geógrafo e Cientista Político, Mestre em Geografia e Doutor em Sociologia, ambos pela UFPR (Curitiba, Paraná, Brasil). Pesquisador do Centro de Estudos em Segurança Pública e Direitos Humanos da UFPR e do Grupo de Pesquisa em Segurança, Violência e Justiça da UFABC. Professor do curso de Criminologia do Centro Universitário Curitiba (UNICURITIBA).

3 Lei nº 7.643/1987: Art. 1º Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras. Art. 2º A infração ao disposto nesta lei será punida com a pena de 2 (dois) a 5 (cinco) anos de reclusão e multa de 50 (cinqüenta) a 100 (cem) Obrigações do Tesouro Nacional - OTN, com perda da embarcação em favor da União, em caso de reincidência.

4 É através dessa argumentação que surge o discurso da impunidade, em que a falta de pena resultaria em uma situação de anomia e, consequentemente, falta de coesão social, fazendo a sociedade ruir.

5 Juntamente com a Escola da Reação Social, tem-se a Teoria Crítica que exerce fundamental importância para o estudo do fenômeno criminal. Como não é objeto do presente artigo, ele não será exposto como se deveria, dada a sua importância. No entanto, pontua-se que a teoria crítica ou radical veio redefinir a problemática do crime e do controle social no contexto capitalista, ante uma concepção materialista que visa a base econômica e as relações de poder. Interpreta essa escola que a criminalidade é dirigida à classe trabalhadora, cuja concepção de crime não tem nada de neutra, mas sim com fins de neutralizar ações contrárias à estrutura das relações sociais. Conforme Juarez Cirino dos Santos: “O estado, produto do antagonismo irreconciliável de classes, representa uma força especial de repressão, ou a organização sistemática da violência, para a opressão de uma classe sobre a outra: as classes economicamente dominantes utilizam o poder concentrado dos aparelhos coercitivos do Estado (polícia, prisão e forças armadas) para garantir a dominação política e a exploração econômica das classes dominadas e, portanto, controlar os antagonismos de classe.” (SANTOS, 2008, 92-93). A prisão, sob o enfoque da Teoria Crítica, apresenta-se com um duplo aspecto: um ideológico, representado na repressão da criminalidade e controle e redução do crime; e outro oculto, que é a reprodução da criminalidade (de classes) e das relações sociais (submissão ao poder).

6 Consideramos o Sistema de Justiça Criminal composto pela Polícia, Ministério Público, Poder Judiciário e prisões.

7 Disponível no sítio eletrônico da Câmara dos Deputados: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/sistema-carcerario-brasileiro-negros-e-pobres-na-prisao>. Acesso em 26/06/2021.

8 Disponível na Rede dos Observatórios de Segurança: <http://observatorioseguranca.com.br/pesquisadores-de-seguranca-se-unem-em-rede/>