USO DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA RETROSPECTIVA NA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL
El uso de la evaluación psicológica retrospectiva em la investigación criminal
Guilherme Bertassoni da Silva1
Carolina Dias2
Julia Kulcheski Paludo3
Adriano Furtado Holanda4
Resumo: O intento desse artigo é expor, qualitativamente, a avaliação psicológica retrospectiva como recurso auxiliar às investigações criminal. Para tanto, trazemos um histórico do uso de técnicas e métodos da Psicologia pelo Instituto de Criminalística do Paraná. O início dos trabalhos se deu com a Seção de Hipnose Forense, que aplicava esta técnica na busca de identificação de suspeitos, principalmente. A atual Seção de Psicologia Forense busca, no caminho já aberto pelo pioneirismo do perito Rui Sampaio, se colocar como aplicadora da Psicologia no campo da investigação criminal, com uso de autópsia psicológica, perfilagem criminal e outras técnicas. Este uso auxilia na resolução de casos de crimes contra a pessoa, visando a redução de taxas de homicídio e da impunidade.
Resumen: El propósito de este artículo es exponer cualitativamente la evaluación psicológica retrospectiva como recurso auxiliar de las investigaciones penales. Por ello, traemos una historia del uso de técnicas y métodos de Psicología por parte del Instituto de Criminalística de Paraná. El trabajo comenzó con la Sección de Hipnosis Forense, que aplicó principalmente esta técnica para identificar a los sospechosos. La actual Sección de Psicología Forense busca, en el camino ya abierto por el espíritu pionero del experto Rui Sampaio, posicionarse como un aplicador de la Psicología en el campo de la investigación criminal, utilizando la autopsia psicológica, la elaboración de perfiles delictivos y otras técnicas. Este uso ayuda a resolver casos de delitos contra la persona, con el objetivo de reducir las tasas de homicidio y la impunidad.
Palavras-chave: Psicologia Forense, Investigação Criminal, Evidências Psicológicas.
Introdução:
A Psicologia é importante fonte de produções técnicas em investigações criminais, ainda que seu uso seja incipiente no país. Todavia, estudos de países da Europa e América estão em franco desenvolvimento e com aplicações dessa disciplina de forma bastante pragmática no campo da investigação criminal.
A Polícia Civil do Paraná (PC) e a Polícia Científica do Paraná (PCP) tiveram em sua estrutura trabalhos voltados para este tema de forma bastante relevante. Apontaremos aqui os trabalhos da Seção de Hipnose Forense (1983-2011) e da Seção de Psicologia Forense (2020). A Seção de Hipnose Forense teve o início de seus trabalhos junto ao Departamento de Polícia Civil, passando depois ao corpo funcional da Polícia Científica por força da Emenda Constitucional nº 10/2000, que criou esta última no Estado do Paraná. A Seção de Psicologia Forense surge como herdeira dos trabalhos da primeira e está em atividade a partir do ano de 2020, como parte integrante do Instituto de Criminalística da Polícia Científica do Paraná.
As duas Seções se utilizaram de métodos advindos da Psicologia e áreas afins para realizar seus trabalhos. Objetivamos expor estes trabalhos e diferenciá-los em aplicação e técnica, visando informar e disseminar conhecimentos neste campo de intersecção da ciência aplicada e da investigação criminal e persecução penal. Em adendo, traremos uma síntese metodológica atual do trabalho desenvolvido pela Seção de Psicologia Forense da PCP.
1. História e Hipnose
A história da vinculação entre a Psicologia e sua prática junto à investigação se dá inicialmente por uma seção de hipnose forense, que fazia aplicações desta técnica em busca da identidade de criminosos e demais dados possíveis na casuística.
1.1 A Seção
Entre os anos de 1983 e 2015, a polícia paranaense contou com uma experiência única no país, com a aplicação da hipnose no campo investigativo e pericial. A Seção estava presente no Instituto de Criminalística, em Curitiba. A Seção de Hipnose Forense esteve diretamente vinculada à Divisão Técnica da Capital, na mesma posição, em estrutura, de seções comumente presentes em institutos de perícia, tais quais Seção de Crimes Contra a Pessoa, Balística Forense, Documentoscopia, Engenharia Legal, Computação Forense, entre outras (Paraná, s/d¹). O nome “Instituto de Criminalística” aparece pela primeira vez, no Estado do Paraná, contido na Lei Complementar 14/1982, o Estatuto da Polícia Civil, no artigo 300 (Paraná, 1982). O uso da hipnose, diretamente voltada para a investigação criminal, iniciaria no ano conseguinte (Sampaio, 1987; Sampaio, 2013).
1.2 Regulamentação da hipnose no campo da saúde
A regulamentação da hipnose no país se dá por diversos conselhos de classe, como veremos a seguir.
- Conselho Federal de Psicologia: aprova e regulamenta o uso da hipnose como recurso auxiliar do trabalho do psicólogo em sua Resolução CFP nº 13/2000.
- Conselho Federal de Odontologia: aprova o uso de recurso hipnótico na Resolução 185/1993.
- Conselho Federal de Medicina: emitiu Parecer Técnico (nº 42/1999), o qual considera a hipnose uma prática médica auxiliar.
- Por fim, o Conselho Federal de Fisioterapia e Terapia Ocupacional aponta a hipnose como ato complementar, por meio da resolução 380/2010.
No cumprimento das prerrogativas regimentais, o Conselho Federal de Psicologia entendeu a possibilidade do uso da hipnose como técnica e recurso auxiliar em psicoterapia. O CFP ressalta o embasamento científico desta. Na Resolução CFP nº 13/2000 a hipnose é descrita como um recurso suficientemente útil para contribuir na resolução de questões físicas e psicológicas em tratamentos de saúde, bem como reconhecida na comunidade científica como um campo de formação e prática para a Psicologia (CFP, 2000).
1.3 Histórico da prática
A história desta Seção se funde com a história do perito criminal que a conduziu. Rui Fernando Cruz Sampaio, integrante da Polícia Civil desde 1979, foi nomeado como perito criminal em 1984, devido ao seu diploma de curso superior em Psicologia pela PUCPR. Já estudava a hipnose desde antes do curso de Psicologia e passou a fazer uso da técnica em sua clínica particular. Formou-se, posteriormente, em medicina, dirigindo sua carreira para as especializações em Psiquiatria (residência), Psiquiatria Forense e Hipnose Clínica. Rui foi psicólogo e psiquiatra, e exerceu a hipnose em seu consultório e no Instituto de Criminalística do Paraná (Straube, 2005; Paraná, s/d²).
Ao iniciar sua carreira como perito criminal, Rui foi para a Seção de Documentoscopia. Fazia exames em documentos, cédulas, assinaturas, visando à autenticidade ou falsidade. Trabalhou também vários anos como plantonista de locais de crimes contra a pessoa e de crimes contra o patrimônio. A Seção de Hipnose Forense ainda não era uma realidade, porém Rui fez valer seu tempo de estudo e prática na área e começou utilizar da prática e prestar atendimentos, vinculados a locais de crime, que se fariam muito importantes para o desenvolvimento subsequente da área (Sampaio, 2013).
A utilização da hipnose forense no Instituto de Criminalística, teve início, de fato, em 1983. Um idoso faleceu depois de ser atropelado por um veículo ao iniciar a travessia de via pública. Uma testemunha, que ainda prestou socorro à vítima, presenciou a fuga do condutor/atropelador. Entretanto, sua memória na era suficiente para trazer informações sobre o fato. Lembrava-se brevemente de um veículo VW/Kombi, de cor branca. Não tinha mais informações a fornecer. Foi aí que ocorreu a intervenção do perito Rui Sampaio, com a intenção de aplicar a hipnose e ajudar a buscar mais dados para a resolução daquele crime. Aquela testemunha foi submetida ao processo hipnótico, com o objetivo de gerar uma hipermnésia, potencializando a capacidade de lembrar detalhes do fato. Foi possível resgatar memórias que indicaram para a placa de licenciamento do veículo em questão, fornecendo informações suficientes para auxiliar a busca da verdade do feito. A polícia buscou pelo veículo e seu proprietário, encontrando naquele aderências de sangue, bem como avarias na carroceria que eram compatíveis com a colisão contra um corpo humano. Essas evidências fizeram-no confessar a autoria daquele ato criminoso e ajudaram a difundir a utilidade da aplicação da hipnose nesse campo criminal (Sampaio, 1987).
Após esse início, a hipnose forense passa a ser mais acessada e surge como um recurso auxiliar especialmente voltado para a prosopografia (a confecção da representação humana por meio de desenhos técnicos) em situações em que uma vítima de crime apresentava uma amnésia parcial ou total, normalmente vinculadas a um transtorno de estresse pós-traumático. O uso da hipnose é estabelecido por meio de um protocolo específico, contendo suas bases ética, científica e investigativa. Na sessão conduzida pelo perito buscava-se o ganho potencial de memória mediante aplicação da técnica hipnótica, para que a vítima fosse capaz de trazer informações que instruíssem a continuidade de um inquérito policial.
O protocolo definia que o uso da hipnose seria suscitado apenas quando os recursos de investigação se mostrassem insuficientes para a resolução do caso em andamento e que deveria ser aplicada apenas por profissional de Psicologia ou Medicina com o devido treinamento em hipnose. Assevera, ainda, que a aplicação da técnica só poderia ser feita em vítimas e testemunhas dos crimes, visando a impedir este uso com autores do ato criminoso – uma vez que se conceitua que uma das premissas da hipnose é o consentimento e colaboração daquele que é submetido ao processo (Sampaio, 1987). Para o uso da técnica junto à intenção de se fazer o trabalho de representação humana por meio de desenho técnico – o “retrato falado” – era realizada a entrevista em sala de espelho, permitindo ao desenhista ouvir as falas daquele que estava hipnotizado para construir o retrato. O hipnólogo fazia as perguntas específicas, previamente determinadas, que seriam a base para a constituição da arte do perito retratista. Somente o profissional que conduzia a sessão fazia as perguntas, evitando qualquer interferência no processo.
Assim, podemos ler nas palavras do perito Rui Sampaio como esses cuidados visavam garantir a segurança e ética do procedimento hipnótico.
“a hipnose adequadamente conduzida, tomadas as devidas precauções e de acordo com preceitos éticos, onde impera acima de tudo o respeito pela individualidade e dignidade humana, pode se transformar numa técnica tão importante no auxílio de elucidação de casos que demandem investigações na esfera criminal quanto representa o laudo pericial ao vislumbrar a materialidade do delito” (Sampaio, 1987, p. 22).
A hipnose não pode se constituir como uma panaceia para a investigação criminal. Ela não se aplica a todos os casos. Em verdade, aplica-se a casos bastante específicos, nos quais estão presentes condições psicológicas derivadas de amnésias totais, parciais ou lacunares. Pessoas que tiveram quadros descritos como transtornos de ansiedade, derivados da situação do crime, são os “clientes ideais” para a técnica. O Transtorno de Estresse Pós-Traumático, Transtorno de Estresse Agudo e Transtorno de Estresse Generalizado são quadros comuns após a ocorrência de crime contra a pessoa ou patrimônio, com uso de violência.
Mais importante que a aplicação, e anterior a ela, é o consentimento do sujeito em ser submetido a este procedimento. Era realizado pedido oficial, formalizado pela autoridade da Delegacia de Polícia, Ministério Público ou Vara de Justiça, demandando a aplicação e explicando o porquê de sua necessidade. Especialmente para casos de pessoa incapaz civilmente (por ser criança, adolescente ou qualquer outra situação) era ainda requerida autorização e presença de quem fosse o responsável legal (Paraná, s/d³).
Ainda na temática do consentimento, o contexto da capacidade civil é algo que nos leva ao Código de Processo Penal (CPP). Em seu artigo 186, o CPP indica à proteção para indivíduo não produzir provas contra si, o que seria um veto significativo ao uso da hipnose pelo autor do crime. Isso é explicado, ademais, pelo fato de que durante este procedimento a pessoa não está inconsciente. Estão preservadas as capacidades da pessoa optar por emitir a verdade ou omiti-la, bem como a indisposição a colaborar com o andamento do inquérito (Sampaio, 2017).
Cumpre salientar que os dados produzidos na sessão de hipnose não são indícios probantes em si, mas um novo elemento trazido à investigação que deverá ser avaliado em sua plausibilidade; esses dados precisam ser comparados com a produção da investigação in totum, para se verificar a pertinência e possível uso dessa informação durante a persecução penal.
O que foi produzido pelo sujeito em hipnose, materializado em documento oficial pelo perito – em seu laudo – tem a finalidade de trazer uma forma de guia, de linha de investigação ainda não diligenciada, que pode fornecer hipóteses para a equipe de investigação, consolidada no inquérito policial e na ação penal.
Com metodologia desenvolvida internamente pelo perito, com o crescente uso da técnica e desfecho de diversos casos, a Seção de Hipnose Forense teve seu reconhecimento oficial em 1998. Ela ficaria ativa até 2011, quando se deu a aposentadoria do perito Rui Sampaio; ele ainda retornou aos trabalhos como psiquiatra forense do IML e atendeu alguns casos em hipnose após o jubilamento, mas a seção não teve o desenvolvimento retomado como antes fora. A Seção de Hipnose Forense foi experiência única no país e em toda a América Latina, com atenção a cerca de 800 casos realizados pelo perito (Sampaio 2013; Paraná, s/d).
2. A retomada da Psicologia na PCP
Após a aposentadoria do perito Rui Sampaio e o fechamento da Seção de Hipnose Forense, o IC ficou desprovido de atividades que vinculassem a Psicologia às práticas policiais investigativas. O ano de 2015 marcaria o início da retomada institucional dos trabalhos com a Psicologia na investigação criminal. Com o convite a compor a equipe que atuava em um caso de grande destaque midiático, o trabalho da Psicologia teve destaque no auxílio à resolução do inquérito policial. Naquele momento foi utilizada a técnica de autópsia psicológica, a qual em sua aplicação permitiu apontar para o diagnóstico diferencial da causa jurídica da morte. Para o caso em questão, buscava-se diferenciar entre uma morte por suicídio ou um homicídio.
Dado destaque desta atuação, ainda sem um arcabouço estrutural que permitisse a continuidade dos trabalhos, iniciamos tratativas junto à direção do Instituto de Criminalística para que esta prestação de serviços fosse adicionada ao organograma. Dessa inicial tratativa o resultado veio a se efetivar apenas em 2018. A publicação de Resolução n° 005 de 11 de janeiro de 2018 oficializaria a criação da Seção de “Psicologia Aplicada a Investigação e Hipnose Forense” na Polícia Científica, a fim de atuar no processo investigativo de crimes (Paraná, 2018).
Apesar de constar como uma Seção pertencente ao órgão pericial, isso ocorria apenas na legislação. Não havia, de fato, a realização do trabalho previsto. Ainda se passariam dois anos até que a Seção saísse do papel.
No fim do ano de 2019 foi apresentado projeto de abertura da seção, o qual estava vinculado a um projeto de doutorado em Psicologia. O projeto da Seção envolvia a Universidade Federal do Paraná, a Universidade Tuiuti do Paraná e a PCP, prevendo uma atuação pragmática e que pudesse ser acompanhada em seu desenvolvimento, com intervenções acadêmicas visando à adequação técnica e teórica. Este projeto foi aceito pela direção da PCP e passou pelas burocracias necessárias para seu início.
A Portaria n° 037/2020 - PC/IC lota então o primeiro Perito Oficial nessa seção, dando início oficialmente aos trabalhos em agosto de 2020. A Seção passaria por mudança em sua nomenclatura, adquirindo o nome atual conforme a Portaria n° 028/2021, vinculando então a Seção de Psicologia Forense à Sede Tarumã da PCP, na capital (Paraná, 2020; Paraná, 2021). O esforço investido desde 2015 faria eco seis anos depois, com o reconhecimento de uma demanda para o aprimoramento da Secretaria de Segurança Pública do Estado e do trabalho do profissional perito de Psicologia. Assim, a PCP passa a contribuir com um projeto inovador que contribui para a sistematização desse conhecimento e formalização/ampliação da área no país.
Por ser uma seção nova, foi necessário iniciar um processo de divulgação junto aos “clientes” em potencial, os delegados da Delegacia de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Já em setembro de 2020 foi realizada reunião com a delegada chefe da DHPP para demonstrar a intenção de desenvolvimento de trabalhos conjuntos entre os entes da polícia judiciária, a Polícia Civil e a PCP.
O atendimento aos casos teria início imediatamente. Para tanto, se fazia mister a definição de um processo metodológico claro e com uma produção documental a ser entregue para os solicitantes. Veremos como isso foi embasado no tópico seguinte.
3. Proposta Metodológica
Procede-se, a partir do pedido da autoridade policial, à minuciosa leitura do material encaminhado, a saber, depoimentos e demais documentos retirados dos autos dos inquéritos.
Busca-se realizar contato pessoal para troca de informações com a(o) delegada(o) do caso e verificados materiais complementares como: laudos de levantamento de locais de morte; laudos dos exames de necropsia; registros obtidos no Sistema de Investigações Policiais; entre outros que surgirem.
O trabalho visa à abrangência parcial de comportamentos e atitudes do suspeito (ou vítima), bem como conhecimento da relação interpessoal entre pessoas do seu convívio social e compreensão de aproximação com suas vítimas. O entendimento desse estudo só pode ser parcial, uma vez que a pessoa analisada é ausente da investigação (por ser autor ainda não identificado ou vítima falecida/desaparecida).
É um procedimento de avaliação, auxiliar e complementar ao processo de investigação criminal. Será executado de forma retrospectiva e indireta, o que oferece probabilidades e hipóteses para uso por quem dirige a investigação (conforme Díaz, 2014). Este trabalho em âmbito investigativo se dá no entendimento de que se pode analisar “cualquier acto u omisión indicativo de una conducta o patrón conductual que queda como vestigio psicológico impreso en el modo en que un agresor realiza un delito, y es susceptible de revelarse por medio del estudio de la víctima, del sitio del suceso, la criminodinámica y los efectos del hecho” (Vicent, 2010, p. 30).
O estudo da vítima – a vitimologia – traz elementos fundamentais para a avaliação que se visa realizar. Os comportamentos da vítima são essenciais para se compreender a personalidade envolvida na autoagressividade, num caso de suicídio. Consequentemente, infere-se a sintonia (ou não) entre os comportamentos que derivam da análise da cena do crime para com essa personalidade. Para um estudo de perfilagem criminal, o estudo das vítimas pode nos fornecer um esquema de escolha do criminoso, auxiliando a depreender deste um padrão de comportamento. Nos apoiamos em Bittencourt (1971) para afirmar que
Em todo ato psíquico há intenção, motivação e significado, e que tal não se verifica como fenômeno esporádico, acidental, isolado e indeterminado, senão como elo de toda teoria a uma série causal (...) a vitimologia pode valer-se deste método psicológico para a compreensão do delito (...) levar a cabo a difícil descoberta da motivação psicológica da conduta, que nesse caso poderia ser designada por criminal (Bittencourt, 1971, p. 45).
Desta maneira, entende-se que voltar os esforços para produzir conhecimentos sobre a vítima, ainda que ausente (por morte ou desaparecimento) nos indicará dados que relacionam essa ao autor do delito. Auxilia, sobretudo, ao estudo das relações do autor com a vítima ou vítimas: no caso de crimes seriados o estudo das características comuns entre vítimas será ilustrativo do padrão de comportamento do criminoso, ajudando a prevenir novos casos e/ou prever seus próximos passos.
O crime, enquanto ato individual e personalíssimo, é reflexo de uma personalidade, de um padrão de comportamento que resta como um vestígio psicológico na cena do crime, suscetível de se revelar por meio do estudo da vítima, do local, da dinâmica do crime e de seus efeitos.
A mesma percepção está em Paim (1998) ao sustentar que “todos os atos de um homem que delira são atos de um alienado”, mantendo a linha de pensamento que nos leva à compreensão de que os ditos vestígios comportamentais presentes à cena do crime podem revelar algo do sujeito que o cometeu. O problema é que o crime não se apresenta como um tipo de quebra-cabeças onde as peças são previamente conhecidas. Ao contrário, é um tipo de encaixe onde os elementos podem gerar diferentes quadros. Assim, o crime deixa vazios de entendimento, lacunas a serem preenchidas pelo processo investigativo. Neste caso, concordamos com Paim (1998, p. 47) quando o mesmo assevera que “a psicologia criminal não se dirige, em última instância, ao conhecimento de potencialidades ou possibilidades gerais, mas ao de atualização real e individual”. Trata-se de uma pragmática, neste caso e não a um estudo de ciência básica, pura.
O uso de técnicas psicológicas no trabalho desta área é de grande gama de possibilidades de atuação, em especial em casos de dúvidas acerca da tipificação penal, onde “seu contributo pode mesmo revelar-se decisivo para o prosseguimento da investigação criminal em alguns, ainda que raros, casos de homicídio encenado pelo autor de molde a fazer crer tratar-se de um suicídio. Embora mais raramente, também pode observar-se a situação inversa, isto é, a encenação de um homicídio preparada previamente pelo próprio suicida com propósitos diversos” (Santos, em Almeida e Paulino, 2012, p. 114).
Consideramos a aplicação de técnicas chamadas de análises psicológicas reconstrutivas, que consistem em levantar elementos psicológicos para trazê-los à análise. Lino (2021), ao descrever o processo de perfilagem criminal, auxilia na descrição das técnicas como um todo:
Esta técnica busca identificar características do possível criminoso a partir de uma análise de seu comportamento durante o crime e de vestígios forenses resultantes da ação criminal. Para tanto, o criminal profiling se embasa na ideia de que as características biopsicossociais do ofensor podem ser inferidas a partir dos vestígios comportamentais do crime cometido.
Por meio da integração de áreas subjacentes da Psicologia, é possível fazer análises de perfis, tanto vitimológico quanto criminal. A partir da investigação minuciosa e embasada na esfera dos estudos sociais metodológicos, fica próximo à realidade a possibilidade de ter uma melhor compreensão do perfil de uma vítima assim como ter um entendimento do comportamento de um criminoso, conforme podemos ver na sequência.
Compreende-se que a estrutura psicológica de cada pessoa mantém um padrão mínimo de estabilidade, definido como personalidade. A personalidade da pessoa se faz presente por meio de seus atos. E não seria diferente no ato criminoso. O contato com a vítima, com o local do crime, com o instrumento causador de lesões, deixa, em alguma medida, sinais (vestígios) da personalidade do autor do ato criminoso. A interpretação desta relação entre autor e o conjunto de seu ato criminoso é a fonte de informações que chamamos então de evidência comportamental. Algo que pode ser constatado, mas não é necessariamente material – é um rastro, um caminho que leva até o desvelar de uma personalidade, de uma pessoa que ali esteve presente (Silva et al, 2021).
O levantamento das evidências psicológicas instruirá a construção do documento oficial a ser juntado ao inquérito e possível ação penal subsequente. Para tanto, optamos pelo modelo de documento chamado parecer psicológico, conforme resolução CFP nº 006/2019. Esta resolução do Conselho Federal de Psicologia define o parecer como um “pronunciamento por escrito, que tem como finalidade apresentar uma análise técnica, respondendo a uma questão-problema do campo psicológico” e que visa a “dirimir dúvidas de uma questão-problema ou documento psicológico que estão interferindo na decisão do solicitante sendo, portanto, uma resposta a uma consulta” (CFP, 2019)
O documento produzido, o parecer, é então uma resposta a um questionamento advindo da autoridade policial, chamando o perito criminal (e nesse caso também psicólogo forense) a se posicionar acerca de um fato já ocorrido.
O parecer psicológico produzido só será seu pleno valor e compreensão se estiver juntado aos outros dados e documentos da investigação contidos no Inquérito Policial e/ou Ação Penal.
3.1 Fluxograma da Seção
1. A Seção de Psicologia Forense recebe ofício da delegacia solicitando seus serviços. O ofício da delegacia é documento necessário para abrir REP (Requisição de Exame Pericial) no GDL (Sistema Gestor de Documentos e Laudos).
2. Agendamento de reunião com a equipe de investigação. Na impossibilidade desta, contato telefônico com a pessoa responsável (delegado).
3. Solicitação do Inquérito Policial na íntegra, bem como demais documentos que possam ser úteis ao caso.
4. Busca no sistema da Polícia Científica de laudos, pareceres e informações que sejam vinculadas ao caso.
5. Leitura dos materiais e seleção dos mais relevantes à construção do parecer.
6. Identificação de levantamento de demais elementos – novas entrevistas, buscas adicionais em diversas fontes: redes sociais, notícias, processos anteriores, boletins de ocorrência, inquéritos policiais prévios.
7. Escrita da parte descritiva do parecer, que embasará a análise.
8. Análise e escrita da análise juntando os achados técnicos sobre o material presente no caso, com construção de hipóteses e sugestões para a equipe de investigação. Nessa etapa se dá o uso da literatura especializada como base de informações e comparação.
9. Inclusão do documento produzido no GDL, com assinatura eletrônica, liberando o mesmo para a autoridade policial solicitante.
10. Feedback da autoridade solicitante, preferencialmente em nova reunião de avaliação.
4. Considerações Finais
A Seção de Psicologia Forense é fiel depositária da tradição iniciada pela Hipnose Forense, considerando-se o uso de métodos e técnicas da Psicologia na investigação criminal. A trajetória da Seção de Hipnose Forense foi responsável pela quebra de paradigmas envolvendo a presença da Psicologia nesse importante campo de sua aplicação. O uso de métodos da avaliação psicológica retrospectiva é hoje possível justamente porque já houve esse início, nos anos de 1980, que permitem a continuidade da relação entre a Psicologia Científica e a crescente qualificação no campo da persecução penal que envolve não apenas institutos de perícia, mas certamente é fato dentro das equipes investigativas das delegacias de Polícia Civil.
O avanço do uso de métodos científicos e protocolos pragmáticos é um forte aliado no aumento da resolução de casos de crimes contra a pessoa, fortalecendo o vínculo entre os órgãos da Segurança Pública, visando à redução dos índices de criminalidade.
O uso de métodos como a autópsia psicológica e a perfilagem criminal, atuando como recurso auxiliar à investigação tradicional, trazem possibilidades de atuação da Psicologia na investigação, fornecendo importantes dados para a resolução dos casos investigados. Não é mais possível considerar a ausência destas técnicas no escopo dos institutos de perícia, uma vez que está sua eficácia está suficientemente demostrada. Há possibilidades de uso da Psicologia junto ao campo da investigação que estão por desenvolver, e isso só será desenvolvido na casuística. Com cerca de um ano de atuação, a equipe da Seção de Psicologia Forense se viu envolvida em casos que tiveram uso da autópsia psicológica, perfilagem criminal, avaliação psicológica indireta a partir da cena de crime e participação em reproduções simuladas. Estão excluídos dessa lista a consultoria dada aos assuntos referentes à Psicologia dentro da PCP e para a Segurança Pública de forma geral.
O desenvolvimento deste trabalho também gerou metodologias novas para a atuação, como a composição de fluxo de atendimento e a própria documentação emitida após o fechamento do caso. O uso do parecer como documento oficial vem ao encontro de legislação própria dentro da ciência psicológica, o que difere do que normalmente se utiliza em resultados da perícia criminal. O laudo é o documento que está presente na conclusão do perito criminal. Mas em nossa análise, o uso do parecer psicológico é mais adequado à forma de apresentação de resultados decorrentes de avaliação psicológica retrospectiva, uma vez que estamos estudando tecnicamente algo que foi produzido dentro da cadeia de investigação e perícia prévia à nossa atuação.
O uso destas técnicas tende ao crescimento, necessitando-se hoje de divulgação destes achados para o convencimento das Secretarias de Segurança das Unidades da Federação. É de imperativa urgência o uso de técnicas psicológicas que venham a auxiliar e maximizar a resolução de casos de crimes contra a pessoa e, indiretamente, reduzir índices de criminalidade, colaborando para a diminuição da sensação de impunidade presente em nossa sociedade.
Referências:
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BITTENCOURT, E. M. Vítima. São Paulo: Ed. EUD, 1971.
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1Perito Criminal na Polícia Científica do Paraná (PCP). Psicólogo, Mestre e Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).
2 Psicóloga pela UFPR. Especialista em Psicologia Hospitalar e da Saúde pela Faculdades Pequeno Príncipe (FPP).
3 Acadêmica de Psicologia na FPP. Estagiária na Seção de Psicologia Forense da PCP.
4 Doutor em Psicologia (PUC de Campinas). Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPR.