A IMPORTÂNCIA DO PROTOCOLO DE ATENDIMENTO POLICIAL À COMUNIDADE LGBTQI+ NAS DELEGACIAS DO PARANÁ

 

The Importance of Policy Service Protocol to the LGBTQI+ Community in Paraná Precincts

-

Ana Cecília Cavalcante Quesado1

Maria Heloisa Becker2

Talita Cancelier Gaspar3

Resumo

O presente artigo se propõe a analisar o atendimento policial dispensado à comunidade LGBTQI+ nas delegacias e a importância de se estabelecer, no Estado do Paraná, um protocolo de atendimento que envolva e respeite as especificidades deste grupo social. Por meio de pesquisa bibliográfica e doutrinária, após contextualização e apresentação de termos e conceitos, é traçado um panorama da violência e demais atos discriminatórios sofridos pela população LGBTQI+ no país e como o tema é recebido pelo ordenamento jurídico brasileiro. A partir disso, com o exame de procedimentos já instituídos em outros Estados do Brasil de forma bem-sucedida, são extraídos os principais pontos a serem adotados para um protocolo a ser futuramente elaborado para implantação no Estado do Paraná. Como resultado do estudo, ressalta-se a constatação da importância e da urgência de aplicação de instruções normativas que norteiem a atuação policial diante do público LGBTQI+ nas delegacias do Paraná, possibilitando atendimento ético e de excelência, que contribua com a erradicação de comportamentos discriminatórios e da revitimização desta parcela da população paranaense.

Palavras-chave: Atendimento policial. Protocolo de atendimento policial. Comunidade LGBTQI+. Vitimologia LGBTQI+. Instruções normativas.

 

Abstract

This article aims to analyze the police assistance provided to the LGBTQI+ community in police stations and the importance of establishing, in the State of Paraná, a service protocol that involves and respects the specifics of this social group. Through bibliographic and doctrinal research, after contextualization and presentation of terms and concepts, is traced an overview of the violence and other discriminatory acts suffered by the LGBTQI+ population in the country and how the theme is received by the Brazilian legal system. Starting there, by the examination of protocols already successfully instituted in other States of Brazil, the main points to be adopted are extracted to a protocol to be elaborated in the future for implantation in the State of Paraná. As a result of the study, it is notewirthy the realization of the importance and urgency of the application of normative instructions that guide police action in front of LGBTQI+ people in Paraná precincts, enabling ethical and excellent service, which contributes to the eradication of discriminatory behaviors and the re-victimization of this portion of Paraná population.

Keywords: Police service. Police service protocol. LGBTQI+ Community. LGBTQI+ victimization. Normative instructions.

 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo tem como intuito abordar o atendimento policial perante a comunidade LGBTQI+ e sua importância social. LGBTQI+ é a contração dos termos Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais, Travestis e Transgêneros, Queer, Intersexuais e outras identidades de gênero ou orientações sexuais. Segundo Aleixo et al. (2013, p. 77), a sigla é utilizada “para identificar todas as orientações sexuais minoritárias e manifestações de identidades de gênero divergentes do sexo designado no nascimento”.

Parte-se do pressuposto de que a ausência de um protocolo de atendimento policial à comunidade LGBTQI+ nas delegacias do Paraná pode facilitar a reprodução de comportamentos LGBTfóbicos, o constrangimento e a revitimização desse grupo social nos ambientes policiais.

A atuação policial não pode ser minada de condutas discriminatórias, ainda que decorrentes de ignorância, visto que estes servidores são os primeiros garantidores dos direitos fundamentais. Barbosa et al. (2020) afirmam que:

O Estado é o maior promotor dos direitos humanos, surgindo também para seus órgãos de segurança pública a responsabilidade-dever de atuação, impulsionando o desenvolvimento social e promovendo a inclusão destes segmentos.

Segundo Cavichioli et al. (2020, p. 6), a descrença dos indivíduos LGBTQI+ em relação a uma polícia que atenda suas necessidades é histórica e isso se reflete nos números de subnotificação da violência sofrida por esse grupo minoritário. “As polícias, como a concretização do uso monopolizado da força pelo Estado, sempre foram usadas para a perseguição dessa parcela da população” (CAVICHIOLI et al., 2020, p. 6).

Considerando-se que, em 2020, o Brasil foi o país com o maior número de pessoas LGBTQI+ assassinadas no mundo (CAVICHIOLI et al., 2020, p. 4), é possível dimensionar a urgência do tema e os prejuízos sociais resultantes da falta de um procedimento operacional especificamente voltado a esse grupo vulnerável. Logo, torna-se imprescindível demonstrar a necessidade de aprovação de normas e regramentos com esse foco no Estado do Paraná, apontar seus benefícios sociais e jurídicos e propor a elaboração de um protocolo de atendimento semelhante aos já implantados no Brasil.

Nesse sentido, a pesquisa pretende lançar luz ao estabelecimento de instruções normativas de atendimento policial aos indivíduos LGBTQI+ no Paraná, sejam eles vítimas ou autores de crimes, bem como refletir sobre a importância e os objetivos de um protocolo de atendimento específico, que oriente e aprimore a Polícia Civil paranaense em sua atuação junto à comunidade LGBTQI+. Sobre esse instrumento técnico, Cavichioli et al. (2020, p. 6) afirmam:

(…) o estabelecimento e a efetiva observância de um procedimento operacional padrão pelas forças de segurança pública é de fundamental importância, pois condiciona a atividade policial a padrões mínimos de efetividade no enfrentamento das violências homotransfóbicas.

A importância dessa abordagem se justifica na constatação de que a Polícia Civil do Paraná não possui, nem aplica um protocolo de atendimento especificamente voltado a esse grupo vulnerável.

Trata-se de um tópico de relevância social, pois tem o propósito de criar meios de combate à reprodução de comportamentos discriminatórios contra pessoas LGBTQI+ nos ambientes policiais, que restringem seus direitos de cidadania e perpetuam um processo social de desumanização desses indivíduos.

A relevância do estudo confunde-se, também, com os desafios enfrentados pelas autoras no desenvolvimento deste artigo, considerando a escassa bibliografia acerca da matéria em questão e a ausência de protocolos de atendimento LGBTQI+ na maioria dos Estados do Brasil. Isso indica que o problema social não vem sendo estudado e enfrentado com a atenção e a seriedade que lhes são devidas.

A metodologia utilizada na elaboração desse artigo é de estudo descritivo analítico, desenvolvido por meio de pesquisas bibliográfica, qualitativa e doutrinária, com análise de artigos, livros, revistas especializadas e dados oficiais obtidos na Internet. Quanto aos objetivos, é descritiva, tendo como intuito analisar, explicar e esclarecer o fenômeno observado. E também exploratória, por buscar o aprimoramento de ideias por meio de informações sobre a questão em foco.

O entusiasmo das autoras ao se debruçar sobre o assunto reside na oportunidade de contribuir com a produção de conhecimento sobre o tema e com a elaboração de instrumentos técnicos ainda inéditos no Paraná, que estabeleçam diretrizes e ações de prevenção à LGBTfobia no ambiente policial paranaense e na desconstrução de uma histórica relação de preconceito e desconfiança.

 

CONCEITOS E TERMINOLOGIAS IMPORTANTES

Conhecer algumas terminologias e a diferenciação entre elas é importante para que o policial civil evite situações discriminatórias aos indivíduos LGBTQI+ autores de crime ou que caracterizem um novo episódio de violência às vítimas de LGBTfobia que procuram as delegacias.

Homofobia é uma expressão coloquial que exprime atitudes e comportamentos negativos, como medo ou ódio, contra gays e lésbicas. Em termos de análise comportamental, homofobia pode ser definida como um conjunto de comportamentos relativos a vários tipos de violências (sejam físicas, psicológicas ou sexuais) contra homossexuais ou pessoas que se identifiquem com a cultura homossexual (FAZZANO; GALLO, 2015).

De acordo com Costa e Nardi (2015), o termo homofobia, que teve sua origem nos Estados Unidos na década de 1970, tem sido constantemente empregado para a conceituação do preconceito e da discriminação contra indivíduos que apresentem orientação sexual diferente da heterossexual.

Segundo Cavichioli et al. (2020, p. 15):

O comportamento LGBTfóbico é aquele que hostiliza e rejeita todos aqueles que não se conformam com o papel de gênero predeterminado socioculturalmente para o seu dito sexo biológico. Dessa forma, casos de LGBTfobia são aqueles em que há rejeição, medo, preconceito, discriminação, aversão, ódio e/ou violência, de conteúdo individual ou coletivo, contra a população LGBTQIA+.

Sexo biológico é o conjunto das “características biológicas ao nascer. A pessoa pode nascer macho, fêmea ou intersexual (quando apresenta traços dos dois outros sexos)” (CAVICHIOLI et al., 2020, p. 9). É possível considerá-lo um aspecto físico do indivíduo, condicionado à presença de determinado órgão sexual.

Sobre identidade de gênero, Aleixo et al. (2013, p. 78) afirmam:

Refere-se a sentimentos, posturas subjetivas, representações e imagens relativas a papéis e funções sociais. Baseada nos eixos masculino e feminino, a noção de gênero expressa a recusa do determinismo biológico na construção da identidade. Isso significa que uma pessoa pode identificar-se com um gênero diverso de seu sexo biológico.

Sustentando-se nas ideias de Cavichioli et al. (2020, p. 9), identidade de gênero seria uma vivência única e íntima de cada ser, podendo ou não se relacionar ao sexo biológico. A pessoa é considerada cisgênera quando se identifica com o sexo biológico com o qual nasceu e seu respectivo papel social; ou transgênero, “quando não se identifica, independentemente do grau, com o gênero atribuído ao seu sexo biológico. É possível a pessoa se enquadrar com gênero fluido ou agênero (que não se identifica com nenhum)” (CAVICHIOLI et al., 2020, p. 9).

A orientação sexual estaria baseada, de acordo com Cavichioli et al. (2020, p. 9), na atração física, sexual ou afetiva tanto por pessoas do mesmo gênero quanto de gênero diverso ou de mais de um gênero. Está relacionada ao direcionamento do desejo afetivo e sexual. A designação de orientação sexual vem substituir o antigo conceito de opção sexual, no sentido de que o alvo do desejo não é uma decisão deliberada, e sim o resultado de um processo de desenvolvimento do indivíduo.

A orientação sexual pode ser heterossexual, homossexual ou bissexual. Heterossexual: quando o desejo afetivo e sexual tem como direcionamento único ou principal pessoas do gênero oposto. Homossexual: quando o desejo afetivo e sexual direciona-se a pessoas do mesmo gênero. Bissexual: quando o desejo afetivo e sexual está direcionado a pessoas de ambos os gêneros (ALEIXO et al., 2013, p. 78 e 79).

Finalmente, o nome social conceitua-se, segundo Cavichioli et al. (2020, p. 10), como a denominação com a qual um indivíduo travesti ou transexual identifica a si mesmo ou pela qual é reconhecido em seu meio social.

De forma complementar, conceitos relacionados à identidade sexual contribuem para o entendimento das características de todos os envolvidos no grupo LGBTQI+, sendo que lésbicas são mulheres que vivem relacionamentos afetivos e/ou sexuais com outras mulheres – diversamente dos gays, homens que se relacionam sexual e/ou afetivamente com outros homens. Baseando-se em entendimento de Aleixo et al. (2013, p. 80), alguns homens que mantêm relações sexuais com outros homens não se identificam como gays, embora vivam uma experiência homossexual. Já os bissexuais são homens e mulheres que cultivam relações com indivíduos de ambos os gêneros.

Seguindo a explanação de algumas designações, travesti é a “pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero oposta ao seu sexo biológico, assumindo papéis de gênero diferentes daqueles impostos pela sociedade” (ALEIXO et al., 2013, p. 80). Sobre os indivíduos identificados como transexuais, Cavichioli et al. (2020, p. 10) afirmam:

(…) pessoa cuja identidade de gênero se difere do sexo biológico com o qual nasceu. Intervenções médicas ou cirúrgicas não são pré-requisito para que essa pessoa seja tratada de acordo com sua identidade de gênero autodeclarada.

Há sustentação da ideia (Aleixo et al., p. 80) de que a pessoa transexual tem um sexo determinado (masculino ou feminino) ao nascer, mas sente-se, comporta-se e aspira ser reconhecida socialmente como gênero oposto. O indivíduo efetua mudanças corporais em busca de viver – e ser visto no meio social - de acordo com o gênero com o qual se identifica e ao qual sente pertencer.

Intersexual é um termo utilizado para substituir a palavra hermafrodita e foi adotado para se referir à pessoa cujas características sexuais são femininas e masculinas e que possuem, ao mesmo tempo, genitália feminina e aparelho reprodutor masculino. Identificam-se como assexuais os indivíduos que não possuem desejos sexuais e o termo queer (“esquisito”, em tradução livre) foi apropriado pela comunidade LGBTQI+ para designar todos que não se encaixam na heterocisnormatividade – imposição da heterossexualidade e da cisgeneridade.

Tendo em vista que esgotar a apresentação de termos e conceitos não é o objetivo deste estudo, e levando em consideração a diversidade da sexualidade humana, constata-se a impossibilidade de afirmar a existência de uma orientação mais natural, correta, válida ou superior a outra. Os conceitos acima relacionados são noções iniciais importantes para a aplicação de um protocolo de atendimento policial voltado à comunidade LGBTQI+.

Homofobia e ordenamento jurídico brasileiro

Os direitos humanos podem ser definidos como o conjunto de direitos e garantias que têm por objetivo o respeito à dignidade da pessoa humana, estabelecendo condições mínimas de vida e de desenvolvimento da personalidade. A ONU define direitos humanos como "garantia fundamental e universal que visa proteger os indivíduos e grupos sociais contra as diversas ações ou omissões daqueles que atentem contra a dignidade da pessoa humana” (NAÇÕES UNIDAS, 2019 apud FIGUEIREDO, 2019). Acerca da dignidade da pessoa humana, Santana (2010) conceitua:

Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos.

Desta forma, é possível afirmar que os direitos humanos asseguram a todos proteção à vida, à liberdade e à dignidade, dentre outros direitos, sendo um mecanismo importante de defesa contra abusos, intolerâncias e opressões.

Segundo a Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), eles possuem alcance universal e são interdependentes e inter-relacionados com outros direitos, devendo a comunidade internacional tratá-los de forma global, justa e equitativa.

Uma das principais características dos direitos humanos é sua inviolabilidade. Isso significa que não podem ser desrespeitados ou violados por determinações infraconstitucionais ou por atos das autoridades públicas, sob pena de responsabilização civil, administrativa e criminal (SAMPAIO, 2014).

A sociedade tende a repelir e reprovar aquilo que é diferente dos costumes tradicionais, porém, é direito de todo ser humano ser livre e respeitado, sendo assegurados seus direitos fundamentais e o exercício da cidadania.

Conforme preceitua a Constituição Federal de 1988 em seu art. 5º caput, "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade". Ademais, em seu art. 4º, inciso IV, estabelece, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Historicamente, pessoas foram atingidas por violações de direitos humanos porque são ou são percebidas como lésbicas, gays ou bissexuais ou em razão de seu comportamento sexual consensual com pessoas do mesmo sexo, ou porque são percebidas como transexuais, transgêneros, intersexuais, ou porque pertencem a grupos sexuais identificados em determinadas sociedades pela sua orientação sexual ou identidade de gênero (BRASIL, 2006 apud AMORIM, 2018, p. 46).

A comunidade LGBTQI+ precisa que essas garantias constitucionais sejam efetivadas e, para isso, é necessário maior repressão das condutas discriminatórias, bem como o comprometimento estatal na elaboração de políticas públicas direcionadas à proteção, garantia e promoção desses direitos.

É urgente a atuação do Estado para coibir e punir a prática da intimidação, da discriminação, dos crimes de ódio e, assim, assegurar a defesa deste grupo vulnerável. Conforme versa a Conferência Mundial de Direitos Humanos (1993), “é dever do Estado promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais”.

Centenas de LGBT são assassinados violentamente todos os anos em razão da LGBTfobia. Travestis, homens e mulheres trans são humilhados cotidianamente pelo Estado brasileiro, nas delegacias e serviços de saúde, não só pela sabida falta de respeito com que são tratados por servidores, mas pela ausência de cuidados médicos adequados para as necessidades específicas dos seus corpos (PEDRA, 2020, p. 10).

Os Programas Nacionais de Direitos Humanos, no âmbito do Governo Federal, surgiram com base na Constituição Federal de 1988 e por meio das recomendações da Conferência Mundial de Direitos Humanos de 1993. A segunda versão do Programa (PNDH2), implementada em 2002, propôs a consolidação e o acréscimo de ações voltadas para a população LGBTQI+. Em um de seus tópicos, traz de forma específica o tema "Orientação Sexual" e faz as seguintes sugestões (PNDH2, 2002, p. 12):

114. Propor emenda à Constituição Federal para incluir a garantia do direito à livre orientação sexual e a proibição da discriminação por orientação sexual.
115. Apoiar a regulamentação da parceria civil registrada entre pessoas do mesmo sexo e a regulamentação da lei de redesignação de sexo e mudança de registro civil para transexuais.
116. Propor o aperfeiçoamento da legislação penal no que se refere à discriminação e à violência motivadas por orientação sexual.
117. Excluir o termo “pederastia” do Código Penal Militar.
118. Incluir nos censos demográficos e pesquisas oficiais dados relativos à orientação sexual.

Apesar da recomendação expressa do PNDH2 referente ao aprimoramento legislativo penal para tipificar condutas discriminatórias e violência motivada por orientação sexual, no Brasil ainda não há lei específica que criminalize tais condutas.

Atualmente, as condutas resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional são punidas pela Lei 7.716/89, popularmente intitulada de Lei de Racismo. Contudo, essa Lei não previu, de forma expressa, o preconceito decorrente de orientação sexual ou identidade de gênero, deixando as condutas homotransfóbicas sem a devida punição por conta da omissão do legislador. Nesse sentido, Pedra (2020, p. 10) afirma que "o Direito é cúmplice e responsável pela regulação e imposição de tratamentos discriminatórios, sofrimento psíquico, violências físicas e assassinatos de pessoas LGBT”.

Antes do Informativo 944 do Supremo Tribunal Federal, algumas ações preconceituosas eram moldadas nas figuras típicas do Código Penal. Xingamentos e condutas LGBTfóbicas, por exemplo, poderiam ser tipificados como crimes contra a honra - caso houvesse alguma atitude mais agressiva, que gerasse dano físico, o autor responderia pelo delito de lesão corporal, apenas. Portanto, nota-se que não havia nenhuma implicação gravosa pelo fato de o crime ser cometido em razão de atitudes odiosas à orientação sexual ou à identidade de gênero.

Diante da omissão legislativa e da ausência de norma regulamentadora, os tribunais superiores começaram a discutir sobre a real intenção da Lei de Racismo e sua função em coibir condutas preconceituosas. Nesse sentido, Cavalcante (2019, p. 14-15) afirma que:

É possível concluir que a omissão do Congresso Nacional em produzir normas legais de proteção penal à comunidade LGBT traduz situação configuradora de ilicitude, em afronta ao texto da CF/88. Na tipologia das situações inconstitucionais, estamos diante do descumprimento, por inércia estatal, de uma norma impositiva de determinado comportamento atribuído ao poder público pela própria Constituição. Trata-se, portanto, de omissão abusiva no adimplemento da prestação legislativa.

Em 2019, o Supremo Tribunal Federal, com base na mora inconstitucional do Congresso Nacional e destinado a cumprir o mandado de criminalização a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal, por meio de uma decisão em plenário (Informativo 944), para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBTQI+, decidiu definir o que seria “racismo” e estabeleceu que deve ser “compreendido em sua dimensão social, projetado para além de aspectos estritamente biológicos e fenótipos”. Por isso, instituiu em sua jurisprudência que:

Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”).

A partir dessa decisão, a Corte Suprema, para garantir a dignidade da pessoa humana e a defesa de um grupo vulnerável, inseriu a figura do racismo social, que engloba homofobia e transfobia, no conceito de racismo estabelecido na Lei 7.716/89, na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes da comunidade LGBTQI+, bem como implicam ofensas a direitos e liberdades fundamentais. Além disso, entendeu que, havendo homicídio motivado por discriminação sexual, a qualificadora do motivo torpe seria aplicada. Nesse contexto, Pedra (2020, p. 15) destaca que:

Não há, na história da produção legislativa federal, nenhuma vitória da população LGBT. Todos os direitos assegurados a esses grupos partiram de ações do Executivo e, principalmente, do Judiciário. É o Poder Judiciário a sede dos maiores êxitos, o que destaca a importância do Direito na garantia do acesso à cidadania por essas pessoas.

Com base no Informativo 944, as condutas LGBTfóbicas passaram a ter tratamento jurídico penal mais gravoso, visto que a Lei de Racismo estabelece aos crimes nela rogados a imprescritibilidade e penas mais severas. Logo, tal decisão serviu como paliativo mais efetivo até que seja aprovada uma lei penal específica.

VITIMOLOGIA DA POPULAÇÃO LGBTQI+

A pauta LGBTQI+ no Brasil vem ganhando cada vez mais destaque, mas a realidade dessa parcela da população ainda é desconhecida em sua totalidade. O país vive um cenário contraditório em relação aos direitos deste grupo vulnerável. Ao mesmo tempo em que foram conquistados direitos historicamente resguardados e que o debate da sociedade sobre a existência de outras formas de ser e de se relacionar ganhou espaço, também observa-se o permanente panorama de violência e discriminação em que a população LGBTQI+ está inserida. Os grupos LGBTQI+ vivem em alarmante estado de perigo, num enfrentamento constante da inaceitação e da intolerância.

A lógica de manutenção do status quo do Estado Brasileiro, e isso inclui todas as unidades federativas que o compõem, perpassa por negar a existência de certas populações no seu lugar de detentoras de direitos. O que não atende ao perfil cisgênero, heterossexual, branco e masculino e se, possível, com todos estes elementos juntos, não está passível de viver livremente seu direito de acesso e meritocrático (GONÇALVES et al., 2020, p. 5).

A violência imposta à comunidade LGBTQI+ não é somente física, mas também psicológica e marcada pelo não acolhimento dessas pessoas em diversos aspectos. Segundo Gonçalves et al. (2020, p. 7 e 8), atos violentos podem ocorrer em diversos âmbitos: público, institucional e, sobretudo, no ambiente familiar e doméstico. O autor afirma, ainda, que existe um déficit de constatação dos índices de violência LGBTfóbica no Brasil, em virtude da escassez de dados governamentais. Além da subnotificação, há o enquadramento típico inadequado dos casos notificados, o que compromete uma visão realista do cenário - em termos de proporção - e gera um obstáculo no combate à violência LGBTfóbica.

O registro efetivo de casos de LGBTfobia é um desafio, seja por altos índices de subnotificação ou por problemas em registro de ocorrências – em que a motivação LGBTfóbica por vezes não é registrada e uma linha de investigação policial neste sentido não é cogitada (GONÇALVES et al., 2020, p. 11).

Como resultado, os crimes são notificados como calúnia, injúria, difamação ou passionais. Poucos atos discriminatórios praticados contra integrantes do segmento LGBTQI+ vêm a público. A ofensa pode ocorrer de forma verbal e a vítima, ao procurar a delegacia de polícia para relatar a agressão, não encontra o respaldo necessário - é comum que se registre boletim de ocorrência por injúria. Sobre a escassez de registros oficiais, Sanches et al. (2018) afirmam:

Uma reflexão importante é a pouca disponibilidade de dados públicos, tanto em âmbito nacional quanto entre os Estados sobre a violência homofóbica. Entende-se que dar visibilidade a esses números colabora para colocar este tema na pauta do debate público, suscitando avanços não só por parte de instituições públicas, como na própria mobilização da sociedade para coibir casos de preconceito e discriminação.

A violência contra pessoas LGBTQI+ pode ser impetrada por meio de bullying, difamação, ofensas verbais, gestos obscenos e de maneiras mais sutis, como exclusão de ambientes sociais, comportamentos ríspidos e sarcásticos – dificultando meios de prova da violência LGBTfóbica. “(…) 30% dos casos de denúncia de violência contra a população LGBTQI+ ocorreram na casa da vítima, seguido por casos nas ruas. A maior parte das denúncias estão atreladas a algum tipo de violência psicológica ou discriminação” (GONÇALVES et al., 2020, p. 16). Outros tipos de violência são marcados pela crueldade do autor, incluindo tortura e grande número de golpes na vítima.

O Disque 100 é um instrumento criado pelo Ministério dos Direitos Humanos para coletar denúncias e compilar dados que impulsionem a formulação de políticas públicas pró-LGBTQI+. Com base nos dados obtidos pelas denúncias recebidas por meio do Disque 100 no ano de 2017, organizados pela Fundação Getúlio Vargas (SANCHES et al., 2018), identificou-se que a maior parte das notificações da comunidade LGBTQI+ diz respeito à violência psicológica. Essa categoria inclui atos de ameaça, humilhação e bullying.

Em segundo lugar nas denúncias ao Disque 100 estão os crimes de discriminação – por conta do gênero e/ou sexualidade de um indivíduo - em diversas esferas, como na saúde e no trabalho. Já em terceiro lugar está a violência física – que inclui desde a lesão corporal até o homicídio.

Observando o gráfico abaixo, chama a atenção o fato de que a violência institucional recebeu maior número de denúncias do que crimes mais comumente veiculados, como os sexuais.

 

Fonte: FGV Dapp (SANCHES, 2018)

Em relação às mortes violentas, de acordo com relatório anual elaborado pelo Grupo Gay da Bahia (Oliveira, 2020, p. 12), em 2019 ocorreram 329 óbitos de indivíduos LGBTQI+ no Brasil. Segundo os índices do relatório, 35,55% das mortes de pessoas LGBTQI+ em 2019 ocorreram na residência das vítimas, enquanto 21,58% foram registradas em vias públicas.

A cada 26 horas um LGBTQI+ é assassinado ou se suicida vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias sexuais. Segundo agências internacionais de direitos humanos, matam-se muitíssimo mais homossexuais e transexuais no Brasil do que nos 13 países do Oriente e da África, onde persiste a pena de morte contra tal segmento. Mais da metade dos LGBTQI+ assassinados no mundo morrem no Brasil (OLIVEIRA, 2020, p. 16).

Entre as 329 vítimas brasileiras de 2019, 297 foram assassinadas – o que corresponde a 82,38% dos casos - e 32 cometeram suicídio (9,73%).

Tipificação das mortes de LGBT+ no Brasil – 2019

Tipificação

Quant.

%

Homicídio

272

82,38

Suicídio

32

9,73

Latrocínio

19

5,78

Atropelamento

5

1,52

Silicone industrial

1

0,3

Total

329

100

Fonte: Grupo Gay da Bahia (OLIVEIRA, 2020)

A tabela abaixo mostra o número de mortes violentas de pessoas LGBTQI+ distribuídas pelos Estados brasileiros. O Paraná ocupa a alarmante 9ª colocação no ranking dos Estados onde mais integrantes do segmento LGBTQI+ morrem em circunstâncias violentas. Em 2019, foram 15 ocorrências de óbito no Estado, o que representa 4,56% do total nacional.

Mortes violentas de LGBT+ por Estado – 2019

UF

Quant.

%

São Paulo

50

15,2

Bahia

32

9,73

Pernambuco

26

7,9

Rio de Janeiro

22

6,68

Pará

21

6,38

Ceará

20

6,08

Minas Gerais

19

5,77

Amazonas

17

5,17

Paraná

15

4,56

Rondônia

9

2,73

Mato Grosso

12

3,65

Goiás

11

3,34

Rio Grande do Sul

10

3,04

Alagoas

9

2,74

Paraíba

8

2,44

Maranhão

8

2,44

Espírito Santos

7

2,14

Piauí

6

1,82

Rio Grande do Norte

6

1,82

Santa Catarina

6

1,82

Roraima

4

1,22

Distrito Federal

3

0,91

Tocantins

3

0,91

Sergipe

2

0,61

Acre

1

0,3

Amapá

1

0,3

Mato Grosso do Sul

1

0,3

Total

329

100

Fonte: Grupo Gay da Bahia (OLIVEIRA, 2020)

 

Entre as capitais brasileiras, Curitiba ocupa a 6ª colocação em número de mortes violentas, à frente de capitais como Recife e Brasília. Foram 5 registros de óbito no ano de 2019, o que representa 1,52% dos casos contabilizados no relatório.

Mortes violentas de LGBT+ por capitais – 2019

Capital

Quant.

%

Salvador

12

3,65

São Paulo

11

3,44

Rio de Janeiro

7

2,13

Belo Horizonte

6

1,82

Fortaleza

6

1,82

Curitiba

5

1,52

Recife

5

1,52

Boa Vista

4

1,22

Belém

3

0,91

Goiânia

3

0,91

João Pessoa

3

0,91

Porto Velho

3

0,91

Manaus

2

0,61

São Luís

2

0,61

Teresina

2

0,61

Brasília

1

0,3

Campo Grande

1

0,3

Cuiabá

1

0,3

Macapá

1

0,3

Maceió

1

0,3

Rio Branco

1

0,3

Vitória

1

0,3

Total

81

24,69

Fonte: Grupo Gay da Bahia (OLIVEIRA, 2020)

 

Diante dos dados e do cenário acima apresentados, conclui-se que o enfrentamento da LGBTfobia requer uma atuação urgente e transversal, que envolva diversas áreas e setores da sociedade. Um dos possíveis – e viáveis - instrumentos de atuação da Polícia Civil do Paraná com esse foco seria um protocolo de atendimento policial exclusivamente direcionado ao segmento LGBTQI+.

A IMPORTÂNCIA DO PROTOCOLO DE ATENDIMENTO POLICIAL

O Paraná é um dos Estados brasileiros que não adota um protocolo de atendimento voltado à população LGBTQI+ – diferentemente de Estados como São Paulo e o Distrito Federal, que consolidaram um documento que instrui e capacita o policial desde a abordagem até o registro de ocorrências.

A ausência de um instrumento assim segmentado pode acarretar a reprodução de condutas preconceituosas e discriminatórias, gerando revitimização e outros constrangimentos às pessoas LGBTQI+ que chegam às delegacias do Paraná – seja como vítimas ou como suspeitas. O policial, muitas vezes, não sabe como abordar e se portar diante de indivíduos LGBTQI+, portanto, é fundamental que o Estado do Paraná implemente uma instrução normativa de atendimento direcionada a esse grupo social, assegurando seus direitos de cidadania, de livre expressão afetivo-sexual e de identidade de gênero.

As pessoas LGBTI+ no Brasil sofrem um processo histórico marcado por discursos religiosos, jurídicos e médicos que produziram materialidades cujos efeitos atuais resultam em sua acentuada subalternização, relegando-as a um elevado déficit de cidadania, marcado pela privação de direitos elementares que a toda população deveriam ser assegurados em um Estado Constitucional Democrático de Direito (CAVICHIOLI et al., 2020, p. 4).

Cumpre ressaltar que repressões mais rigorosas, por si só, não previnem condutas discriminatórias. A atuação policial está diretamente ligada à comunidade e, por isso, deve assumir um caráter também preventivo, sendo que uma de suas funções é assegurar o direito fundamental dos indivíduos. De acordo com as ideias de Hoffmann (2015), as polícias civis têm o dever de realizar investigações alinhadas com um país democrático e republicano, e o delegado de polícia assume o papel de “primeira autoridade estatal a preservar os direitos fundamentais, não só das vítimas, mas também dos próprios investigados” (HOFFMANN, 2015).

Um procedimento voltado à comunidade LGBTQI+ visa, entre outras coisas, elucidar as diferenças entre sexo biológico, identidade de gênero, orientação sexual e nome social. Esse instrumento técnico também busca estabelecer as hipóteses de abordagem policial e como devem ser efetivamente realizadas, respeitando as características desse público em específico. Além disso, orienta sobre a correta execução de ações como busca pessoal, revista de pertences, registro de ocorrências e comunicação entre policial e cidadão.

A elaboração de um protocolo de atendimento LGBTQI+ no Estado do Paraná é importante porque cria oportunidades de construção de novas formas de relacionamento entre esse grupo vulnerável e a polícia – pautadas em respeito e confiança. Sua criação e consequente implantação são propostas pelas autoras da pesquisa como meios de prestar um atendimento ético, igualitário, efetivo e de excelência, além de garantir os direitos fundamentais, afastar as condutas LGBTfóbicas e a revitimização de todos os indivíduos LGBTQI+ que forem abordados ou buscarem atendimento nas delegacias de Polícia Civil do Estado do Paraná.

Tendo como base os protocolos e cartilhas existentes sobre o assunto, foram levantados os principais itens que devem ser pontuados durante o atendimento à população LGBTQI+, tanto quando estiverem figurando no papel de vítimas, como também nas situações em que forem autores de crimes.

O “Protocolo Policial para Enfrentamento da Violência LGBTfóbica no Brasil”, da FGV, foi primordial para a estruturação das instruções abaixo enumeradas, servindo como principal fonte de informação com relação aos procedimentos que devem ser abordados durante o atendimento nas delegacias do Estado:

Abordagem Policial

  • A abordagem policial deve ser respeitosa e não discriminatória.
  • Deve-se ter um cuidado especial com relação a pessoas trans e travestis, pois a questão da identificação social da vítima deve ser considerada. Para isso, o policial deverá perguntar de que maneira a pessoa deseja ser chamada e, a partir dessa informação, utilizar os pronomes de tratamento adequados.
  • Mesmo que a pessoa não tenha o nome alterado no registro civil, prevalece o direito de ser chamada pelo nome social.
  • O policial não deve fazer comentários ofensivos, perguntas invasivas ou piadas que possam constranger a pessoa com relação à sua identidade de gênero e nome social.
  • Deve-se evitar perguntas com relação à realização ou não de cirurgias de mudança de sexo.

 

Revista Pessoal

  • A revista pessoal deve ser efetuada levando-se em consideração as especificidades das pessoas LGBTQI+, mais uma vez dando uma atenção especial às pessoas trans e travestis.

  • A busca pessoal em travestis e mulheres transexuais deve ser preferencialmente realizada pelo efetivo feminino. Deve-se sempre avaliar o grau de risco que a pessoa revistada possa oferecer à policial feminina, considerando uma possível desvantagem de força física. Se for necessário, um policial do sexo masculino pode acompanhar o procedimento para garantir a segurança da policial em caso de reação.
  • Com relação à revista e busca pessoal em homens trans, também recomenda-se que seja realizada preferencialmente pelo efetivo feminino (exceto se a pessoa preferir de outra forma).
  • A revista íntima não deve ser vexatória ou abusiva e, se possível, deve-se utilizar o scanner corporal.
  • A intimidade da pessoa revistada deve ser respeitada, evitando-se a exposição de pertences de foro íntimo e a realização de comentários sobre a presença de objetos, remédios ou acessórios específicos.

Identificação Documental

  • Ainda com relação ao tratamento de pessoas transgênero, deve-se, no momento da identificação, manter a discrição e evitar repetir em voz alta o nome de registro da pessoa, quando este for diferente do nome social informado.
  • Os documentos oficiais e registros de ocorrência devem conter em destaque o nome social informado, devendo ser registrado também o nome de registro (da cédula de identidade).

Encarceramento de Pessoas LGBTQI+

  • As pessoas transgêneros, sejam elas homens ou mulheres, devem ser mantidas em celas separadas de outros homens, para assegurar que não sofram nenhum tipo de constrangimento ou violência, especialmente violências de caráter sexual.
  • A pessoa transgênero só deve ser recolhida à cela de contenção provisória da delegacia caso exista a possibilidade de ser colocada em uma cela individual. Caso contrário, deve ser encaminhada ao Departamento Penitenciário (DEPEN) para o seu adequado alojamento.

Tratamento dispensado à vítima LGBTQI+ nas delegacias

  • Quando a vítima atendida na delegacia for LGBTQI+, deve-se considerar sempre se houve motivação LGBTfóbica quando ela relatar que foi violentada, agredida ou exposta a situações degradantes.
  • O policial deverá demonstrar paciência e interesse durante o atendimento da ocorrência, além de incentivar a vítima a proceder com o registro do fato.
  • A vítima deve ser ouvida em um ambiente em que seja assegurada a sua privacidade e onde ela possa se sentir segura e acolhida.
  • Devem ser tomados os devidos cuidados em relação ao uso do nome social e à identidade de gênero.
  • Recomenda-se o uso de formulário padrão com campos específicos referentes à identidade de gênero e nome social, orientação sexual, faixa etária, raça/cor, dentre outros. Muito importante também é a inclusão de campo indicando se a motivação foi causada por LGBTfobia ou não.
  • Quando houver agressão física, deve-se, sempre que possível, registrar as agressões em fotografias e encaminhar a vítima para o exame de corpo de delito.
  • A vítima deve ser informada sobre os seus direitos e sobre as fases de um processo criminal, se for o caso.
  • Se o crime ocorrer em ambiente doméstico e familiar, a vítima deve ser informada sobre a possibilidade de requerer medidas protetivas de urgência.

Lei Maria da Penha e as Mulheres LBT (Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Mulheres Transexuais)

  • Quando houver violência contra uma mulher LBT nos moldes da Lei Maria da Penha, esta deverá, sempre que possível, ter atendimento garantido nas Delegacias da Mulher. A Lei abrange não só a mulher em sua definição biológica, como também a pessoa que se identifique com o gênero feminino e, em razão disso, esteja em situação de vulnerabilidade. Assim como também envolve as mulheres em relações homoafetivas, em que no polo do agressor, ao invés de um homem, exista a figura de uma outra mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo, conforme exposto, buscou alertar sobre a importância do conhecimento acerca das terminologias e siglas por parte dos agentes de segurança pública como forma de eludir constrangimento e revitimização dos membros integrantes da comunidade LGBTQI+ em ambientes que deveriam ser de acolhimento e garantia de direitos.

A sexualidade é inerente ao ser humano e é fundamental tanto nas relações quanto na formação da individualidade e da personalidade de cada um, devendo ser compreendida como parte constituinte da identidade do indivíduo. Por isso, faz-se necessário respeito e tratamento digno tanto pela sociedade como por parte dos órgãos públicos.

A atuação policial não pode ser eivada de preconceitos nem de atitudes LGBTfóbicas, ainda que ocorra de forma não intencional ou por ignorância, visto que estes são os primeiros garantidores dos direitos fundamentais. A carência de instruções normativas de atendimento à comunidade LGBTQI+ relativas à abordagem, registro de ocorrências e demais procedimentos permite a reprodução de comportamentos discriminatórios e LGBTfóbicos por parte desses servidores.

O atendimento policial deve ser qualificado e respaldado em educação, simpatia, respeito e amparo com toda a população, sem qualquer distinção, conforme preceitua o art. 5º da Constituição Federal. Além disso, é dever do Estado promover e assegurar os direitos humanos e liberdades fundamentais. Portanto, diante de condutas preconceituosas dirigidas a um grupo vulnerável exposto a perseguição, hostilização e intolerância, é essencial que o Estado proporcione proteção adequada, adotando mecanismos atualizados e eficientes.

A complexidade do diálogo sobre os direitos LGBTQI+ no Brasil se mostra em vários aspectos, entre eles no estabelecimento de diretrizes para enfrentamento da violência e para erradicação do preconceito sofrido pelos integrantes de grupos LGBTQI+. O combate a esse grave problema social, para ser efetivo, deve primeiramente ser compreendido de forma integral. É necessário pensar políticas públicas que envolvam diversos setores – desde sua criação, passando pela sua implantação e monitoramento.

Imprescindível compreender a função crucial desempenhada pelo ente estadual, especialmente no que condiz à sua articulação em políticas públicas transversais; sua distinta capacidade em estabelecer convênios com municípios e sua habilidade em adquirir capilaridade na implementação efetiva de políticas públicas (GONÇALVES, 2020, p. 9).

Além da melhoria na coleta de dados oficiais e de mais apoio a iniciativas sociais, os atos de violência contra a comunidade LGBTQI+ devem ser enfrentados de maneira conjunta por diversos segmentos - assistência social, saúde, moradia, educação, cultura, trabalho e segurança pública, o foco deste estudo.

O Ofício Circular 01/2018, emitido pela Corregedoria-Geral da Polícia Civil do Paraná, versa sobre crimes cometidos em razão de orientação sexual e identidade de gênero. No documento, são feitas 3 (três) recomendações aos policiais civis. Uma delas trata da atenção e do atendimento aos prazos legais quando do processamento, investigação e conclusão de inquéritos que tratem de crimes contra pessoas LGBTQI+. Outra recomendação diz respeito à correta notificação dos crimes LGBTfóbicos, ao instruir os policiais a fazerem “uso do campo ‘políticas públicas’, inclusos nos Boletins de Ocorrência” (CGPC, Ofício Circular 01/2018). A última recomendação diz:

Aos Delegados de Polícia, seus agentes e auxiliares, quando da ocorrência de crimes cometidos em razão de orientação sexual e identidade de gênero, que chegarem ao seu conhecimento, que dispensem tratamento adequado às vítimas (CGPC, Ofício Circular 01/2018).

É possível observar que a abordagem ao atendimento oferecido às pessoas LGBTQI+ é feita de forma genérica, sem especificação dos corretos procedimentos a serem adotados no tratamento dispensado ao público LGBTQI+. Além disso, o Ofício Circular esquece de mencionar os suspeitos e autores de crimes que também são indivíduos LGBTQI+ e, com isso, também merecem atendimento adequado, que respeite sua individualidade.

Diante do exposto, resta constatada a necessidade de formulação de um documento mais detalhado e preciso, que atenda aos seguintes objetivos: padronizar e uniformizar os procedimentos adotados pela PCPR; construir uma relação de confiança entre a polícia e a comunidade LGBTQI+; estabelecer instruções específicas para o atendimento qualificado à população LGBTQI+, assegurando garantia de direitos e proteção no âmbito da Segurança Pública.

Conclui-se de suma relevância e urgência a criação de um protocolo de atendimento policial voltado à população LGBTQI+ do Estado do Paraná, visando orientar seus servidores desde a abordagem até os demais procedimentos, como já ocorre em outros Estados, destacando São Paulo e Distrito Federal.

A implantação desse instrumento técnico proporcionará um atendimento policial democrático, respeitoso, digno e qualitativo, garantindo que os direitos desse grupo sejam resguardados e preservados. Constitui-se mecanismo eficiente para combater comportamentos discriminatórios e LGBTfóbicos dentro das delegacias, bem como para erradicar a revitimização. Tal proposta visa, também, restaurar a confiança e a credibilidade da instituição frente a comunidade LGBTQI+.

REFERÊNCIAS:

ALEIXO, Cap. Daniel Pires; et al. Cartilha de Atuação Policial na Proteção dos Direitos Humanos de Pessoas em Situação de Vulnerabilidade. Secretaria Nacional de Segurança Pública. 2ª. ed. Brasília, 2013. Disponível em: <https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo_legado1/seguranca-publica/cartilhas/a_cartilha_policial_2013.pdf>. Acesso em: 26 fev. 2021.

 

AMORIM, Jussyara Paiva. LGBTfobia e o Sistema de Segurança Pública: Análise do Atendimento às Vítimas. Dissertação (Pós-Graduação em Serviço Social) – Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2018. Disponível em: <https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/18899/1/JussyaraPaivaAmorim_Dissert.pdf>. Acesso em: 26 mai. 2021.

BARBOSA, Cap. QOPM Deoclécio Aires; et al. Atuação Policial e Bombeiro Militar na proteção dos Direitos Humanos: População LGBT. Revista de Ciências Policiais da Academia Policial Militar do Guatupê. São José dos Pinhais, 2020. Disponível em: <http://www.revistas.pr.gov.br/index.php/apmg/ano2020_v03_artigo01>. Acesso em: 22 fev. 2021.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo nº 944. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo944.htm>. Acesso em: 26 mai. 2021.

CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Informativo Comentado: Informativo 944 – STF. Dizer o Direito. Manaus, 2019. Disponível em: <https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2019/07/info-944-stf-1.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2021.

CAVICHIOLI, Anderson; et al. Protocolo Policial Para Enfrentamento Da Violência Lgbtfóbica No Brasil. FGV Direito SP, São Paulo, dez. 2020. Disponível em:

<http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/29887/Protocolo%20policial%20para%20enfrentamento%20da%20viol%c3%aancia%20LGBTF%c3%b3bica%20no%20Brasil.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 22 fev. 2021.

CONFERÊNCIA MUNDIAL DE DIREITOS HUMANOS, 2., 1993, Viena, Declaração e Programação de Ação de Viena. Viena, 1993, 5p. Disponível em: <https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/declaracaoviena.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2021.

CORREGEDORIA-GERAL, Polícia Civil do Paraná. Crimes Cometidos em Razão de Orientação Sexual e Identidade de Gênero. Ofício Circular 01/2018, 2018. Disponível em: <https://www.policiacivil.pr.gov.br/sites/default/arquivos_restritos/files/documento/2021-05/oficio_circular_01_18.pdf>. Acesso em: 26 mai. 2021.

COSTA, Ângelo Brandelli; NARDI, Henrique Caetano. Homofobia e Preconceito contra Diversidade Sexual: Debate Conceitual. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, vol. 23, nº 3, p. 715-726, 2015. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v23n3/v23n3a15.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2021.

BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Decreto nº 4.229 de 13 de maio de 2002. Dispõe sobre o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH II, instituído pelo Decreto nº 1.904, de 13 de maio de 1996, e dá outras providências, Brasília: 2002. Disponível em: <https://direito.mppr.mp.br/arquivos/File/PNDH2.pdf>. Acesso em: 30 mar. 2021.

FAZZANO, Leandro Herkert; GALLO, Alex Eduardo. Uma Análise da Homofobia Sob a Perspectiva da Análise do Comportamento. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, vol. 23, nº 3, p. 535-545, 2015. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v23n3/v23n3a02.pdf>. Acesso em: 27 fev. 2021.

 

FIGUEIREDO, Rafael. Conceito de Direitos Humanos. JUS, Teresina, dez. 2019. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/78307/conceito-de-direitos-humanos>. Acesso em: 30 mar. 2021.

GONÇALVES, Alice Calixto; et al. A Violência LGBTQIA+ no Brasil. FGV Direito SP, São Paulo, dez. 2020. Disponível em: <https://www.fgv.br/mailing/2020/webinar/DIREITO/Nota_Tecnica_n.pdf>. Acesso em: 26 mai. 2021.

HOFFMAN, Henrique. Missão da Polícia Judiciária é buscar a verdade e garantir direitos fundamentais. Revista Consultor Jurídico, São Paulo, 14 jul. 2015. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-jul-14/academia-policia-missao-policia-judiciaria-buscar-verdade-garantir-direitos-fundamentais>. Acesso em: 25 fev. 2021.

OLIVEIRA, José Marcelo Domingos de. Mortes Violentas de LGBT+ no Brasil – 2019. 1ª ed. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2020. Disponível em: <https://grupogaydabahia.com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti>. Acesso em: 26 mai. 2021.

PEDRA, Caio Benevides. Direitos LGBT: a LGBTfobia Estrutural e a Diversidade Sexual e de Gênero no Direito Brasileiro. 1ª ed. Curitiba: Editora Appris, 2020.

SAMPAIO, Nestor. Características dos Direitos Humanos Fundamentais. JusBrasil, 2014. Disponível em: <https://nestorsampaio.jusbrasil.com.br/artigos/112330165/caracteristicas-dos-direitos-humanos-fundamentais>. Acesso em: 25 de abril de 2021.

SANCHES, Danielle; et al. Dados Públicos sobre Violência Homofóbica no Brasil: 29 anos de combate ao preconceito. FGV DAPP. Disponível em: <http://dapp.fgv.br/dados-publicos-sobre-violencia-homofobica-no-brasil-29-anos-de-combate-ao-preconceito>. Acesso em: 06 abr. 2021.

SANTANA, Raquel. A dignidade da pessoa humana como princípio absoluto. DireitoNet, 17 jun. 2010. Disponível em: <https://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5787/A-dignidade-da-pessoa-humana-como-principio-absoluto>. Acesso em: 25 de abril de 2021.

 


1 Pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio. E-mail: esc.accquesado@pc.pr.gov.br.

2 Graduada em Engenharia de Produção Civil pela UTFPR. E-mail: esc.mhbecker@pc.pr.gov.

3 Pós-graduada em Comunicação, Cultura e Arte pela PUC-PR. E-mail: esc.tcgaspar@pc.pr.gov.br.